Tudo
começou em uma sexta-feira. Não comi nada da ração. Também não bebi nada. Jejum
completo.
Somos
em seis e moramos em uma casa espaçosa. O pai, a mãe, o filho, a filha (todos
estes humanos), uma porquinha-da índia e eu, um cachorro. Eu disse que a casa é
espaçosa, mas só conheço parte dela, pois não subo escadas. Porém, mesmo sem
escalar aqueles medonhos e imprevisíveis degraus, mesmo sem saber o que tem lá
pra cima, dá pra deduzir que a residência é bem grande. O lugar que ocupo, o
canil, também é amplo. Enquanto muitos cães, em outras casas, ficam apertados
em um canto qualquer, o meu espaço é bastante privilegiado. Casa de blocos com
telhas onduladas, quintal cimentado entre os canteiros, cerca de madeira com
grade de arame, portãozinho...
Então,
como estava dizendo, naquela sexta-feira eu não comi e nem bebi nada. Estava
tudo travado. Também as minhas necessidades ficaram prejudicadas. Quanto à
parte sólida, nada fiz. E a parte líquida, logo de início comecei a urinar bem
menos. Fazia força, fazia pouco, e sempre com vontade. Espalhei pingos de xixi
por todo o quintal. Estava doendo também. Tinha alguma coisa errada com as
minhas “partes baixas”. Só perceberam o meu jejum absoluto quando já era tarde
da noite, pois acho que aquele foi um dia corrido para a família... Toda noite
o pai costuma recolher meu cocô e jogar água no xixi, mas naquela sexta-feira ele
não limpou. Quando entrou no quintal, foi ver as tigelas e, ao notar que
estavam cheias, exclamou: “Nossa Bob, você não comeu nada!”. Saiu com a cara
preocupada.
No
dia seguinte apareceu a veterinária. Quando ouviu o que a mãe e o pai disseram
a meu respeito, que eu não havia comido e nem bebido nada, que estava fazendo
xixi de pouquinho em pouquinho e, principalmente, quando viu a força que eu fiz
para urinar, ela falou que era infecção urinária. Disse que me passaria remédio
e, se eu não melhorasse, teriam que me levar para fazer um tal de ultrassom.
Neste
mesmo dia começaram a me dar remédio. Mas não deu muito certo não. Primeiro
tentaram colocar o comprimido dentro de uma coisa que parecia, no gosto, a
ração que comia todo dia. Na aparência, era bem maior que um grão de ração.
Estava na cara que tinha algo dentro. Até aí não havia problema algum, pois se
eu não estivesse doente, engoliria o negócio num instante. Sempre fui de comer
bem e de uma vez só. Porém naqueles dias minha fome acabou. Então eles
colocaram o remédio em coisas gostosas, para me atrair. Começou com quibe, mas
acabei aprendendo a separar o remédio e comer só a carne, então partiram para o
frango. Com ele ficava muito mais difícil de separar, porque o danado é gostoso
demais. Quando a gente (força de expressão) vai ver, já engoliu...
No
domingo estava um pouco melhor. Pouca coisa. Comi um tantinho mais que nada.
Quanto a beber, era nada mesmo, pois estava cismado com a água. Se estava
dolorido e difícil de ela sair, pra que colocar mais água pra dentro?
Na
terça-feira travou total. Não saía nada, nem gotinhas. E a dor, então, aumentou
ainda mais. No final da tarde, colocaram-me no quintal lateral. Logo percebi
que estavam esperando o pai. A casa estava cheia. A vó, a tia e a prima vieram
me ver. Estavam todos preocupados comigo.
Já
fazia um bom tempo que havia escurecido, quando o pai chegou, apressado. Mal
entrou e já foi me colocando a correia na coleira. Abriu a porta do meio e
então apareceu o porta-malas aberto do carro. Oh, não! A última vez que entrei
aí dentro foi... Mas não deu nem tempo de lembrar direito daquele apuro danado,
pois o pai já foi me pegando e colocando lá pra dentro. Sou um cachorro de
médio para grande porte e também pesado. Acho que não foi fácil pra ele encarar
o peso. Porém foi melhor assim, meio que no susto. Se me deixassem parar para
pensar, aí então eu travaria e quero ver alguém me colocar no carro...
Como
comecei a dizer, daquela última vez que havia entrado no porta-malas (que
também foi a primeira), foi simplesmente terrível. Levaram-me para a casa da
tia. Acho que havia alguma festa por lá, pois ouvi o barulho. Pelo que percebi
era a festa da minha prima, uma cachorra pequenina e bem peluda. Mas quem disse
que eu saí de lá de dentro? Quando eu subi no carro não percebi a altura
estratosférica em que fui me meter... (quem disse que cachorro não é
inteligente o bastante para utilizar a palavra “estratosférica”?) Fiquei a
festa toda no porta-malas. Com dó de mim, vieram me dar o bolo de aniversário.
Estava bom pra cachorro (no sentido figurado e no real também...). Disseram que
era só eu descer que tinha mais para mim. Mas eu não quis nem saber. Só fui
descer em casa, depois de muito sofrimento. Foi tanta coisa que tentaram pra me
tirar dali... Mas não vou contar porque tudo isso, todos estes acontecimentos
pertencem a outra estória. Então fica para outra, pois desta vez não me
levariam para festa nenhuma. Muito pelo contrário.
Depois
de um trajeto curto, mais perto que a casa da tia, o carro estacionou. O pai e
a mãe agiram rápido. Botaram-me pra fora, meio empurrado, meio carregado.
Receavam que o meu medo aumentasse, pois aí, com certeza, dificultaria muito as
coisas. Já desci preso pela coleira e então percebi que estava em um pequeno
estacionamento. Logo adiante havia a entrada do prédio, e foi para lá que me
levaram. Assim que entramos, eis que aconteceu o meu primeiro contato com um
elevador. A mãe apertou um botão na parede e abriu-se uma porta diante de nós.
Não tenho medo de dizer, sou um cachorro medroso. Acho que já deu para
perceber. Mas outra vez o pai foi mais rápido que o meu medo. Puxou-me pela
coleira e de repente estava naquela casinha. Na verdade, um “casão”, bem mais
alta que a minha. Também era mais espaçosa. Outro botão apertado e a porta
fechou-se. Ficamos um tempinho lá dentro. Deu umas balançadas e, depois de um
pequeno tranco, a porta abriu novamente. Ao sairmos, nos dividimos. A mãe ficou
em um balcão e nós seguimos adiante, onde havia várias cadeiras, e lá ficamos.
O pai sentado em uma delas e eu ao seu lado.
Aquilo
era um hospital. Não passei bons momentos nesse lugar. Várias vezes ali voltei,
mas nenhuma delas foi tão ruim quanto esta primeira. Pensei que nunca mais
sairia dali. Começou com uma consulta normal. Mas para mim não foi algo tão
normal assim. Estava acostumado com consultas feitas em casa, sem precisar
subir em mesas enormes. Carregaram-me lá pra cima e me seguraram, enquanto a
veterinária me examinava. Depois de me apalpar, disse que eu estava com dor.
Até aí, nenhuma grande descoberta. Se eu pudesse falar, da minha dor era a
primeira coisa que falaria. Após as inconvenientes invasões daquele abusado
exame, por cima, cutucando o meu ouvido, por baixo, enfiando-me uma coisa que
depois soube que se tratava de um instrumento chamado termômetro, finalmente me
tiraram daquela altura gigantesca. Tenho medo de altura, sim. É um dos meus
maiores medos. Não gosto de subir em nada que esteja acima do chão,
principalmente se é algo que não conheço. Naquela mesma primeira noite de
hospital, colocaram-me diante de uma balança. Não era muito alta. Para falar a
verdade, já havia, em minhas caminhadas, subido degraus maiores na calçada. Mas
se não fosse o pai ter aplicado novamente a técnica do “meio empurrado, meio
carregado”, com certeza eu lá estaria até agora, estacionado em frente da
balança.
Depois
de me pesarem, levaram-me de volta ao consultório. Então a doutora disse que eu
teria que fazer um tal de Raio X. Eta exame danado de ruim! Primeiro porque não
pude entrar com o pai e nem com a mãe, que ficaram lá fora, esperando. Dentro
de um lugar meio escuro, apertaram-me de tudo quanto é lado. Seguraram-me de um
jeito que eu fiquei travado. Acho até que me prenderam com uns cintos, mas eu
não tenho certeza. Só sei que deu um desespero tremendo. Ainda bem que durou
pouco!
Outra
vez no consultório, a veterinária mostrou-nos o resultado. Pegou a foto que
tiraram de dentro de mim e, colocando-a sobre uma luz que acendeu na parede,
apontou para várias pedras e foi contando... Disse que havia umas treze na
bexiga. “Ah! Então é por isso que eu estou deste jeito, com essa dor ferrada”,
pensei. “Poxa! Como elas foram parar aí? Não me lembro de ter comido pedra...
Sabonete eu até comi (depois vomitei; não foi boa coisa), mas pedra, acho que
não”.
Quando
a doutora disse a palavra “cirurgia”, notei que as expressões do pai e da mãe
foram cobertas por um véu de apreensão... Todo mundo sabe que cachorro é um
bicho sensível, que percebe facilmente os sentimentos dos seres humanos. O pai
me olhava com uma cara de dó que não precisava nem dizer nada. O rosto da mãe
era uma preocupação só.
A
última vez que vi alguém da família naquela primeira noite de hospital foi
quando o pai se despediu de mim. Colocaram-me em uma gaiola pequena e ele, do
lado de fora, repetiu um milhão de vezes que tudo ia ficar bem e que no dia
seguinte voltaria para me ver. Mas sua cara estava preocupada e dizia muitas
outras coisas...
Esta
estória está ficando um tanto longa. Acho que sou um cão bastante abusado ao
tentar prender a atenção dos humanos com uma narração tão prolongada. O que as
pessoas esperam de um cachorro são reações rápidas, coisas breves, como, por
exemplo, pegar bolinha ou abanar o rabo contente quando o dono chega. Assim
sendo, vou procurar resumir os acontecimentos, passando somente pelos
principais, aqueles que eu não posso deixar de contar.
Quanto
à cirurgia, recuperação e aqueles intermináveis dias de hospital, não tenho
quase nada a mencionar. Cirurgia, ninguém se lembra. Homem, cachorro, qualquer animal,
todo mundo apaga. E depois, a prisão. Eu e outros cães, todos encarcerados em
cubículos engradados, empilhados uns sobre os outros. Não posso dizer que é
desumano porque o termo não se aplica à minha espécie. E ainda ouvi, de um
colega de cela ao lado, que estávamos em um hospital de primeira linha, bem
melhor que muitos hospitais dos humanos. Acho que os homens têm muito a
melhorar nesta área... Está certo que havia alguns ali comigo que mal
conseguiam levantar a pata. Para estes, tanto fazia estar preso ou não. Mas
havia outros, como eu, que estavam bem e que queriam sair logo dali. Foi por
isso que eu fiquei muito bravo quando, no dia seguinte após a cirurgia,
apareceu a mãe. Achei que me traria de volta, mas logo percebi que estava
enganado. Fiquei revoltado. Quando foi me fazer um carinho na cabeça, não
aguentei. Quase peguei a mão dela com uma abocanhada. É lógico que não
machuquei, não seria capaz disso. Só queria dar um susto.
Finalmente
acabei saindo. Ufa, não estava aguentando mais! Não que o tratamento fosse
ruim. Pelo contrário. Cuidaram bem de mim, levaram-me até passear, dar uma
volta. O problema é que hospital é lugar nada agradável... Quando o doutor
estava dando a minha alta, com todos nós no consultório, disse que eu era um
cachorro tranquilo e bonzinho. Gostei do elogio. Vi que o pai e a mãe também
gostaram. Mas notei, não conseguiram esconder perante a percepção aguçada de um
cão, que ficaram surpresos. Acho que não acreditaram no “tranquilo”, sabem que
eu não sou bem assim... Mas é que quando a gente está fora de casa, tenta se
comportar melhor. Enfim, parece que consegui enganar bem...
Ficar
doente, passar por dificuldades de saúde, como eu passei, tem suas vantagens.
Por vários dias fiquei no quintal lateral, onde a mãe estende a roupa. Junto a
este quintal, há um corredor que vai até à porta do meio, passagem para a
garagem, e até à porta da sala também. Colocaram uma madeira para impedir que
eu chegasse nestas portas, e assim ganhei mais este corredor dentro do meu
espaço autorizado. Era uma boa área para andar e xeretar e, principalmente,
ficava bem ao lado da família. Dava até para ver a cozinha de perto, meu lugar
preferido, de onde partem os cheiros mais incríveis. De noite me colocavam para
dentro, em outro corredor, que passa ao lado da cozinha.
Logo
que cheguei do hospital, percebi que a ração mudou. Não gostei nada do sabor.
Também não estava com muita fome. Acho que era por causa da tal cirurgia. Bem
que poderiam me dar aquelas coisas que eles comiam. Meu olfato de cão se
maravilhava com aquele festival de odores. E havia também um outro festival,
não tão agradável quanto este. Lá embaixo, onde abriram e tiraram as minhas
pedras, estava pingando algo... A doutora disse que era normal, iria pingar
mesmo, pois o corte estaria purgando, sarando. Mas o problema é que não estava
sarando não. Comecei a sentir um peso no saco (você acha que um cachorro
utilizaria a palavra escroto, saco escrotal ou testículos? Lógico que não!
Conheço todos estes termos, mas não pegaria bem utilizá-los. Afinal, um
vira-lata não tem nada disso. Tem saco mesmo!). O dito cujo ficou inchado pra
caramba, parecia que iria estourar! Quem primeiro percebeu esta minha anomalia
foi a filha...
E
lá vamos nós, novamente, para o hospital. Toda noite me levavam para lá. Uma
injeção por dia. Acho que foi umas sete vezes. Nesse vai-e-vem, acabei
aprendendo a andar de carro. No final, quando era para sair, já estava pulando
para fora do porta-malas!
Destes
“passeios” para levar a minha picada diária, tenho duas coisas a comentar. A
primeira é que o medo que tenho dos meus semelhantes continuou o mesmo, ou até
piorou. Em uma das ocasiões em que aguardava minha vez, ao lado do pai e da
mãe, que estavam sentados em duas das muitas cadeiras da área de espera,
ouvimos alguém chamar pelo meu nome. A gente se sente importante. Chamam os
animais, e não as pessoas. Então o pai levantou-se e puxou-me pela correia da
coleira. Naquela noite havia muitos cães no hospital e isso me estressa. A
maioria deles late por qualquer coisa. Quando estávamos bem em frente das
fileiras de cadeiras, expostos para toda aquela plateia de cachorros e seus
respectivos donos, os latidos aumentaram sendo que um deles, em particular, me
fez tremer na base. Sentei e travei totalmente. Não conseguia mover um músculo
sequer. Mas foi tudo muito rápido. O pai estava atento e não deixou a minha
travada ganhar força. Já foi logo puxando e até me arrastou um pouco.
Foi-que-foi que acabou conseguindo fazer com que eu, de alguma maneira, chegasse
ao consultório. Fico chateado com esta minha reação, percebo que o pai se
envergonha bastante ao ver um cachorrão do meu tamanho, paralisado pelo pânico
quando ouve algum latido mais alto ou estridente, mesmo que venha do mais
minúsculo cão. Mas o que eu posso fazer? Não consigo controlar. É mais forte
que eu...
A
segunda coisa que fiquei de contar é sobre os nomes de cachorro que a gente
ouve chamar lá no hospital. Veja só: Cocada. Outro: Coca-Cola. Esse é pior:
Gonçalves. O enfermeiro até deixou escapar uma risadinha quando foi chamar esse
nome. O pessoal inventa cada uma!
Ah,
tem mais outra coisa que eu não posso esquecer de contar sobre esse período em
que estava me recuperando. Aconteceu algo maravilhoso naqueles dias. Deixaram
de me dar a ração, que eu não estava nada disposto a comer, para colocar, no
seu lugar, canja! Santa canja! Não dava nem para acreditar, era simplesmente
delicioso! Metia a cara no potinho e papava tudo de uma vez, sem tirar o
focinho de lá de dentro. A ideia de me alimentar assim tão generosamente surgiu
devido ao fato de que eu havia perdido um peso considerável. Quem pensou nesta
divina solução foi a veterinária do hospital. Até que ela é legalzinha. Quando
me levavam para tomar as injeções, em uma das vezes ela chegou até a me chamar
de príncipe. Confesso que a primeira impressão que tive a seu respeito não foi
das melhores. De vez em quando cismo com alguma pessoa. Mas acho que desta vez
me enganei. Até me arrependo da avançada que lhe dei. Também, logo de começo já
foi querendo passar a mão na minha cabeça. É lógico que eu não machuquei. Sou
da paz. Um grunhido e uma ameaçada de abocanhada básica, só para marcar o meu
território. Coisa de animal mesmo. Acho que foi por isso que ela disse para o
pai e para a mãe que eu sou traiçoeiro...
É...
Assim está bom... Pra quem não queria se alongar muito... Dei uma de cachorro
abusado mesmo! Mas é que não deu para resumir, bem que eu tentei, mas não dava.
Tem coisa que a gente não pode dizer assim por cima... Sabe, gostei deste negócio
de contar coisas. Bem que poderia dar um livro! Não tem aquele livro que acabou
virando filme? Como é mesmo o nome? “Marley e eu”, acho que é isso. Naquele,
quem conta a estória é o dono do cão. No meu, é o próprio cão. Bem melhor
assim, não acha? “Eu, Bob”, ficou bom?
Um comentário:
Ah! Bob, não tem medo de dizer que é medroso? Que coragem!!!
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