Estação
Pinheiros. Caminho apressadamente ao lado de muitos outros corpos também
apressados. Dois grandes fluxos de usuários, contrários e separados por aqueles
pequenos postes e fitas que costumam delimitar as filas. Qualquer tropeço aqui
no meio leva junto uns três ou quatro: queda do tipo reação em cadeia.
Está
chamando. Do outro lado da linha, minha sogra atende. Digo que estou saindo do
trem para pegar o metrô. Ela logo adivinha o motivo da ligação. “Você quer
falar com o Francisco, não é? Ele está aqui do lado”. Ouço as primeiras
palavras do sobrinho do meu finado sogro como quem ouve uma assombração. É o
Seu Manoel falando. O mesmo “alô” arrastado. O mesmo timbre da mesma fala
mansa. Volto ao passado. Dá saudade... A genética é uma coisa impressionante.
Tio e sobrinho não conviveram juntos. Mas Francisco tem o mesmo jeito do tio,
que é o meu sogro, que já foi... A mesma maneira de rir, enterrado entre os
ombros. E quando apertou a minha mão, demorando mais no cumprimento, oscilando
no mesmo ritmo demorado, turvou-se rapidamente a cena e diante de mim, por um
instante, surgiu o Seu Manoel... E agora novamente se transforma, em um simples
“alô”, trazendo de volta quem já partiu... E por falar em partir, Francisco
está partindo de volta para Alagoas. É por isto que estou ligando para ele, em
meio a todos estes passos apressados que caminham pela passarela que liga a
estação de trem com a de metrô. Amanhã cedo ele retorna para a sua terra.
A
ligação fica ruim. Não consigo entendê-lo. No começo da escada rolante que
desce, decido interromper e abreviar. “Eu não estou ouvindo direito o que você
está falando. Mas eu estou ligando para te desejar uma boa viagem...”. A
despedida termina. Palavras normais de ambas as partes. Tudo de bom, desculpe
alguma coisa, que nada, abração... Desligo o celular pouco antes de entrar no
segundo lance de escada rolante. Fica a sensação de que foi rápido demais, de
que deveríamos ter nos demorado mais um pouco na despedida, uma ou outra
brincadeira talvez...
Ainda
mesmo neste segundo lance de escada rolante, vejo uma cena que me chama a
atenção. A vida é assim mesmo. Não dá nem tempo de viver um momento e já vem
outro para nos fisgar. É impossível não notar. Duas pequenas luzes azuis são os
olhos da menina que está no colo da mãe. Voltada para trás, observa tudo e
todos com extrema atenção. Mais “todos” do que “tudo”. Quero dizer que se
concentra mais nas pessoas do que nas coisas. Um homem, no degrau anterior da
escada rolante, faz brincadeiras para ganhar de presente a luz de um olhar ou
de um sorriso da pequenina. No primeiro momento penso que é uma pessoa
qualquer, estranha à criança, querendo somente algumas migalhas do encanto que
aquele rostinho proporciona. Mas depois percebo que deve ser o seu pai,
carregando mala e bolsa. Então concluo que estão viajando.
Nesta
tenra idade, as crianças geralmente não têm o mínimo pudor ou receio de encarar
os outros, demoradamente. Carinhas miúdas e ingênuas... Mas esta menininha,
para mim, tem um olhar intimidador. Sinto uma desproporcionalidade. Como se
dentro deste diminuto corpo infantil, praticamente ainda uma bebê, estivesse
abrigado um espírito, uma alma elevada, superior em inteligência e talvez em
muitas outras virtudes também...
Na
plataforma da estação do metrô, outra vez a vida me empurra de um galho para
outro, em sua dança de contrastes. Surge-me outra cena que me rouba a atenção.
E não tem como não roubar, pois a moça está vestida (vestida?) de uma maneira
bastante escandalosa. Os fartos e negros peitos saltam para fora do mais do que
generoso decote tipo bojo. O short está de acordo com a proposta deste tipo de
roupa: exibição. Lá estão seios e pernas expostos para quem quiser ver.
A
composição para na plataforma e nós entramos. Após os poucos segundos de
acomodação das pessoas nos espaços disponíveis, vejo que as cenas anteriores
continuam por perto. A menininha de olhos azuis e a “meninona” de peitos
negros... A primeira está no assento ao meu lado, no colo da mãe. A segunda
está no outro lado vagão, sentada rente à janela. Fico algum tempo tentando
decifrar quem é a pessoa que a acompanha. Tem idade para ser seu pai. Sentado
junto a ela, com o braço direito por trás das costas da moça, jaqueta de couro
preto, todo cheio de estilo... Não, não pode ser o pai. Descarto esta opção e
concluo ser alguém exibicionista como ela, pois está mostrando o seu
“brinquedinho” para todo mundo...
Volto-me
para a bem mais nova das meninas, que certamente está fazendo muito mais
sucesso que a outra. Incrível o poder de atração destes olhinhos cor de céu.
Por onde passam, arrastam estranhos, que querem sorver fagulhas do seu
indescritível encanto. Agora mesmo mais um está caindo em sua rede. É um senhor
forte, por volta de uns cinquenta anos, pele escura, que, assim desse jeito
vigoroso, fica até engraçado vê-lo balançar a cabeça de um lado para outro,
brincando de se esconder por trás de uma barreira invisível. Acontece algum
tipo de comunicação entre os dois. Ele começa timidamente, mas ao perceber que
ela está correspondendo, dando-lhe o prazer do seu maravilhoso sorriso, isto
lhe provoca movimentos mais largos e desavergonhados.
Então
eu também tento estabelecer uma ligação com a menininha, a dona da boina rosa e
da meia-calça em um tom mais claro de roxo... Mas não consigo. Ela prefere o
homem negro. Volta-se novamente para ele, e eu explico o meu fracasso porque
ainda vejo, naquele rostinho infantil, algo mais amadurecido, que continua a me
intimidar. Estranho: intimida, mas atrai.
A
vida é assim mesmo. Vai nos empurrando de um galho para outro. Estação
Consolação. As portas do metrô se abrem. Entro. Está bem vazio. Sento junto à
janela. De dentro da mochila, pego a apostila que estou estudando e também uma
caneta. O verso das folhas está em branco. Ótimo! A menininha de olhos azuis...
Tenho que escrever. Preciso escrever!
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