Dia
14/11, véspera da proclamação da república, segunda-feira, emenda de feriado.
Fim-de-semana prolongado, com chuvas igualmente prolongadas... O que fazer
nesta tarde, para onde passear? Depois de descartar as demais alternativas, o
mercado municipal surge como o lugar ideal. Pode chover que não tem problema,
pois é coberto. Lugar histórico, com uma bela e preservada arquitetura.
A
família é composta por quatro integrantes, mas só três decidem passear.
Odranoel, o filho de 16 anos, quer ficar em casa, jogando no computador.
Esinom, a filha de 22, está ansiosa para conhecer o ponto turístico. Asiram, a
mãe, 52 anos, faz uns 40 ou mais que seus pés não pisam o chão daquele secular
mercado. Também está ansiosa com o passeio. Antes de mencionar o último
integrante, devo dizer que a sogra também vai. Dona Ahnizeret, 76 anos, mãe da
mãe, ponta firme pra qualquer parada, principalmente as loucas aventuras da
família Avlis Onerom. E, fechando o quadro dos participantes desta mais nova
expedição do nosso intrépido clã, Rimeda, o pai, 52 anos. Este vai porque vai.
Sem entusiasmo. Tanto é que quando todos estão esperando o uber na calçada, em
frente à casa, ele ouve da esposa: "Se for para ir com essa cara é melhor
ficar!".
Da
viagem de ida, duas coisas merecem destaque: a longa duração do trajeto e as
habilidades do motorista. Durante a hora e meia de prisão no congestionamento, ouvem
o condutor do veículo desfilar as suas diversificadas atividades. Neste
cansativo percurso, que demora três vezes mais que o normal, ficam sabendo que
ele, além de motorista de úber, é corretor de imóveis, marceneiro, padeiro e,
ainda por cima, seu filho de oito anos já namora, desde os seis... Família
prodígio.
Para
quem não conhece, o mercado municipal de São Paulo tem dois pavimentos. O
inferior comporta as muitas lojas, o mercado propriamente dito. O superior, que
ocupa uma faixa lateral da grande área interna da portentosa construção, abriga
alguns restaurantes. Rimeda, o pai, ao ver o preço destes restaurantes, chega à
seguinte conclusão: ”Shopping é passeio de pobre. Mercado municipal que é coisa
de rico!”. Então decidem comer algo mais barato, ou menos caro, na parte de
baixo. Descem a escada e dão de cara com um tal de “Tigrão”, uma lanchonete e
pastelaria. Pedem dois pastéis de camarão com catupiry (um para a filha, e
outro para o pai), dois bolinhos de bacalhau (um para a mãe, e outro para a
sogra) e dois sucos (de laranja para Esinom e de goiaba para Rimeda). Asiram, a
mãe, fica indignada ao ver quanto custa o pastel: “Por esse valor eu compro
quatro pastéis na feira e ainda sobra!”. Mas ela não sabe que esse do mercado é
diferente. Olha, não dá pra reclamar do recheio não. Tem muito camarão mesmo,
daqueles meio grandinhos. Nada daquela papinha de camarão. E ainda por cima com
uma generosa quantidade de catupiry de verdade. Uma verdadeira refeição. Vale o
preço.
Enquanto
Rimeda e a filha deliciam-se com as últimas mordidas em seus caros e saborosos
pastéis, Asiram e sua mãe vão ao banheiro. Na volta, se perdem. Precisam até
ligar para marcar um ponto de encontro: “Estamos em frente ao ‘Porco Feliz’ (um
açougue)”. O encontro acontece no local marcado e logo Asiram vai explicando: “A
gente saiu do banheiro e chegou no ‘Tigrão’. Mas era tudo diferente, o caixa...
e lá tinha mesas... Sabe esses filmes em que o cara volta pro mesmo lugar e tá
tudo diferente?”. Mas isto não é nada, meu caro leitor ou ouvinte, espere só para
ver. A volta destes quatro indivíduos para casa promete... Porém, antes de
contar os desencontros e peripécias no retorno de nossa aventureira família,
vamos passear um pouco mais pelo mercado.
“Tem
pimenta?”, Rimeda pergunta ao vendedor. E este já vai lhe colocando um tantinho
da farinha na palma da mão. Ele prova, constata, e comenta, ao apertar o passo
e novamente se aproximar da família: “Esta é apimentada mesmo! Se a mãe comer
essa farinha, pega fogo!”. Asiram tem sensibilidade com coisas apimentadas.
Também tem sensibilidade com preço alto. Acha tudo caro e vive procurando os
preços mais baixos. Este tipo de alergia á saudável para a saúde financeira da
família Avlis Onerom, mas aqui no mercado municipal ela está sofrendo, pois não
encontra nada barato. Porém, depois de muita procura, acaba por encontrar
lascas de bacalhau com um valor aceitável para os seus padrões. “Tá mais
barato”, ela fala e mostra para os outros três. Momentos de indecisão. Apesar de
a filha dizer para aproveitar e já comprar, a mãe decide comprar depois, no
final do passeio.
Corredores
cheios, muita gente. Neste cenário um tanto conturbado, os vendedores nem se
preocupam em gritar ou anunciar suas mercadorias. Ficam quietos, afinal tem
tanta freguesia pra lá e pra cá que nem precisam fazer propaganda. Também quase
não oferecem os seus produtos para degustação. Além da farinha apimentada, o
que aparece para provar é somente uva, queijo e café, sendo que este último só
é saboreado por Rimeda, que fica sabendo do preço: o dobro do normal, pois se
trata de café orgânico, proveniente do interior... Sertãozinho? Muzambinho? O
pai já não mais se lembra do nome da cidade. Quanto ao queijo, em pequenos
pedaços sobre a bandeja, enquanto uma multidão de dedos procura capturá-los, recebe
a aprovação de Rimeda e Esinom. Asiram, a mãe, pergunta se é muito salgado. O pai
e a filha respondem que não, que o queijo é bom, macio. A uva, ao contrário,
não agrada os paladares. Primeiro se interessam pelo seu formato, bastante
comprido. Comentam algo e logo o vendedor oferece a fruta, dizendo que é usada
para produzir a bebida “chandon-sei-lá-de-quê”. É somente Esinom que ouve este
comentário, mas logo esquece o nome.
Do
mercado, acabam comprando quatro paçocas e um pacote de balas. Uma paçoca para
cada um deles e as balas para Odranoel. Compram também castanhas quebradas. Com
relação às lascas de bacalhau, procuram por aquela que está com um preço bom,
mas não mais a encontram. As lojas já estão fechando, fato este que leva à
seguinte conclusão de Rimeda: “Deve estar em uma loja que já fechou”. Esinom,
dirigindo-se à mãe, não deixa por menos: “Eu te falei para já comprar naquela
hora!”. Após dizer isto, fala algo mais para a mãe e afasta-se, sozinha. Rimeda
pensa que ela vai procurar as tais lascas, mas depois ela lhe aparece com um
enorme espeto com gigantescos morangos cobertos com calda de chocolate. Ele não
entende como pode caber tanta comida naquele corpinho miúdo, sem barriga
nenhuma.
Pronto.
Aos nossos quatro aventureiros só lhes restam o caminho de volta. E, quanto a
você, estimado leitor ou ouvinte, pode se preparar. Logo adiante vêm muito mais
aventuras e trapalhadas dessa turma. Vamos começar a relatar os acontecimentos
a partir do ponto em que eles estão em frente ao mercado municipal, esperando o
uber.
“Quer
esperar? Chama o uber. Quer ir agora? Vai de táxi!”, gritam dois rapazes,
postados na calçada. São os garotos-propaganda dos taxistas, uns três ou quatro
que se enfileiram com seus carros brancos, rente ao meio-fio. Revezam-se nos
gritos, os nossos indivíduos encarregados do marketing. E sabem fazê-lo, pois,
conforme o tempo passa, a proposta “vai de táxi” fica cada vez mais tentadora,
apesar do preço, consideravelmente maior. A primeira reserva do uber é
cancelada pelo motorista. A segunda chamada demora a chegar, pois o trânsito
está intenso. Na tela do aplicativo, o tal carrinho que aparece no mapa custa a
se aproximar. Fica dando voltas, travado há vários quarteirões de distância.
Enquanto isso: “Quer esperar? Chama o uber. Quer ir agora? Vai de táxi!”.
Então,
depois de muita espera, o motorista liga para Esinom. Diz ele: “Estou em frente
ao mercado municipal”. Mas que “em frente” é essa que não acham? Não entendem.
Saem em busca do automóvel procurado. Modelo: Sandero. Quanto à placa, já está
gravada na memória de Rimeda, que se adianta em passadas apressadas pela
Avenida do Estado. Quer encontrar logo o carro encomendado, pois não deseja
expor a família em andanças por lugares arriscados. Mas o problema é que ele
está sem o seu celular, que, sem carga, repousa tranquilamente na mesinha da
sala. Geralmente acontece isso. Ele deixa a bateria acabar e, quando está
saindo, ao notar a inoperância do aparelho, acaba largando-o em casa. Mas ele,
neste momento, nem está pensando em celular. O que faz somente é cravar o olho
nas chapas dos carros. Quer achar rapidamente o transporte para que todos saiam
logo dali. Vira a esquina e continua, sem nada encontrar. Passa por outra
esquina, vai dando a volta no mercado, sem olhar para trás, e nada do uber.
Vamos
agora acompanhar os outros integrantes da família, que veem Rimeda se afastar
mais à frente. De repente o celular de Esinom toca. É o motorista, novamente.
Ele explica que, na verdade, não está bem em frente do mercado, mas sim um
pouco distante, no quarteirão ao lado. Diz o nome da rua e o número. Então, com
esta nova informação, alcançam finalmente o tão procurado Sandero. Logo que
Esinom avista o veículo, espera encontrar seu pai lá dentro do carro, sentado, aguardando-os.
“Saiu na frente e encontrou antes da gente”, pensa ela. A surpresa não é
somente dela, mas de todas as três, quando constatam o sumiço de Rimeda. Asiram
sai em busca do marido, enquanto Esinom e Dona Ahnizeret acompanham a espera do
motorista. Este, por sua vez, já demonstra sinais de irritação e impaciência,
devido à demora e principalmente porque seu carro está parado em local
totalmente irregular, sujeito a multas. Então pergunta: “Quantos anos ele
tem?”. Refere-se ao indivíduo que está desaparecido, imaginando tratar-se de
alguém idoso, talvez bem idoso, que está perdido por qualquer incapacidade
característica da idade. A filha hesita em responder, um tanto envergonhada
pelo pai. “Ele tem 52 anos”, acaba falando. O condutor do uber rebate, com uma
expressão nada boa: “É mais novo que eu”.
Mudando
de cena, vemos neste momento a busca de Asiram, que vai outra vez até a entrada
do mercado onde ficam parados os táxis. Olha para um lado, para outro, e nada
do marido. Irrita-se ao ouvir a propaganda, dita a plenos pulmões: “Quer
esperar? Chama o uber. Quer ir agora? Vai de táxi!”. Tem que achá-lo
rapidamente, pois o motorista do uber está esperando.
Onde,
afinal, está Rimeda? Arrisca algum palpite? Bom, o que eu posso dizer é que ele
acaba dando duas ou três voltas em torno do mercado. Quando passa em frente
àquela mesma entrada, escuta a mesma ladainha: “Quer esperar? Chama o uber.
Quer ir agora? Vai de táxi!”. Isto lhe causa uma mistura de sentimentos:
arrependimento, irritação e vergonha. Olhando os propagandistas, pensa: “Será
que eles me reconheceram? Será que se lembram que eu estava aqui com a minha
família e que não quisemos pegar táxi? Será que perceberam que eu estou
perdido, que a família se perdeu?”. E ele continua, com um olho cravado nas
chapas de todos os carros e com o outro olho em busca dos seus familiares.
Preocupa-se, imagina um sequestro dos entes queridos. Mas ao mesmo tempo não dá
muito crédito para este cenário trágico. “É muito azar. Já não basta o azar de
terem se perdido, é preciso ter outro azar em cima para serem vítimas de um
sequestro”, este é o pensamento que lhe passa pela cabeça. Então muda a
estratégia e inclui outro elemento para procurar. Busca por um telefone
público, os “dinossauricos” e quase extintos orelhões. Encontra um em frente a
uma das entradas do mercado, do outro lado da rua. Pega o aparelho e leva-o ao
ouvido: sem linha. Prossegue na tentativa de encontrar uma maneira de se
comunicar com a família. Cogita a ideia de pedir emprestado um celular ou
entrar em algum bar ou qualquer estabelecimento comercial a fim de ligar para a
esposa. Porém acha que ainda não precisa adotar esta atitude que, de certa
maneira, lhe parece um tanto abusiva ou exagerada. Decide continuar a sua caça
aos orelhões. Afasta-se um pouco do mercado. Até que chega a um cruzamento onde
lhe aparecem três espécimes do dinossáurico meio de comunicação. “Um deles deve
estar funcionando. Não é possível que os três estejam quebrados”, conclui Rimeda.
E ele tem sorte, pois logo o primeiro dá linha.
Digita
o número de Asiram, a cobrar. Tem certa dificuldade para ouvir a gravação, mas
entende que ela quer dizer que este tipo de ligação não é permitido. Assim
sendo, liga para sua casa. Odranoel atende. Ele explica para o filho a
situação. Pede para ele ligar para a mãe. “Fala pra ela que é para se encontrar
comigo na mesma entrada do mercado em que a gente estava antes”, estas são as
palavras do pai. Então Rimeda espera, pois quer aguardar o contato do filho com
a mãe, para saber como estão. Pretende conversar mais uma vez com Odranoel,
antes de partir para o local do encontro.
Asiram
recebe a ligação do filho com alívio, pois a mesma comprova que o marido encontra-se
bem. Mas o alívio cede lugar para a impaciência quando nota a demora de Rimeda.
“Já era para ele estar aqui”, conclui ela. Não consegue ficar parada, só
esperando. Vai para a esquina da Avenida do Estado. Volta. Então liga para
Odranoel. Depois para Esinom, para falar que podem ir embora com o uber, para
não atrasar ainda mais o motorista. Mas, de alguma maneira, continuam
esperando, pelo menos mais um pouco, pelo resgate do pai.
E
por falar em uber, vamos dar uma olhada nos acontecimentos que cercam o cada
vez mais irritado motorista. Ele sabe que se tomar uma multa, isto inviabiliza
totalmente a corrida e tira-lhe também o lucro de muitas outras viagens. Enerva-se
por estar estacionado em local proibido, por atrapalhar o complicado fluxo
local, composto por pedestres, automóveis e carrinhos puxados por sucateiros, e
vai disparando: “Por que vocês não andam todos juntos? Por que a família não
anda junta? (...) Ele está sem o celular? Então que pegue o celular de alguém na
rua! Fala que é uma emergência!”. Enquanto isso, Dona Ahnizeret, com seus 76
anos, sente-se cansada pela caminhada, pela espera prolongada, e já vai
procurando onde se encostar, ao mesmo tempo em que diz: “Acho que dá para eu encostar
aqui... Se o dono do carrinho chegar, aí eu saio”. Esinom, sempre assustada com
tudo, já vê a vó desabar junto com o carrinho, no que lhe parece ser um frágil
e arriscado equilíbrio... ”Já cheguei”, anuncia o sucateiro, que surge por trás
da sogra de Rimeda e já vai falando: “Pode ficar, minha senhora. Eu vou sair daqui
a pouquinho, mas até lá pode ficar...”. E o condutor do uber continua inquieto,
pra lá e pra cá, cavando um buraco no chão com a sua impaciência.
Daquele
mesmo olherão, Rimeda procura falar novamente com o filho. Tenta umas duas ou
três vezes até que, por fim, a ligação completa e Odranoel atende. O pai já vai
logo perguntando: “Conseguiu falar com a mãe?”. Quando fica sabendo que sim,
tranquiliza-se. “Estão todos vivos e bem! Graças a Deus!”, é o que pensa. Mas o
filho interrompe este breve instante graça ao dizer, chamando a atenção do pai:
“Você ainda não foi se encontrar com a mãe? Ela tá esperando!”. E lá vai o
marido, aliviado, encontrar-se com a esposa.
Ao
se aproximar da entrada do mercado municipal, Rimeda lança o olhar ao longe, em
busca de Asiram. Encontra-a voltada de costas, na esquina da Avenida do Estado.
Agrada-lhe ter esta visão e, principalmente, ter a certeza de que aquelas
costas, aquelas omoplatas e ombros, não lhe restam dúvidas que pertencem à sua
querida esposa, sua sã e salva esposa. Tão logo se encontram, ela apressa-se em
dizer: “Eu já falei pro uber ir embora!”. E imediatamente liga para a filha, na
tentativa de reverter a situação.
Agora
vamos acompanhar Esinom e a avó, desde o momento em que a mãe manda o uber partir.
A jovem aperta o celular contra o ouvido e tenta confirmar o que acaba de
ouvir. “Mãe, tem certeza que a gente pode ir embora?”. Após a resposta
positiva, entram no carro, Dona Ahnizeret e a neta, com um vazio por dentro,
denunciando a falta de dois integrantes da família. Vão quatro e voltam dois.
Não está certo... Mas para o motorista está mais do que correto. Engolindo
palavras e sentimentos negativos, esforça-se para conter a explosão. Não se
conforma com o enorme tempo de espera, com o transtorno da agitação do centro
da cidade, com as multas que podem aparecer... A ligação de Asiram surge
realmente no último instante. Ao mesmo tempo em que Esinom ouve a boa notícia,
o Sandero manobra e começa a sair. “Achou eles!”, exclama a filha. Ato
contínuo, o motorista rebate, atordoado: “Eles?!? Tem mais que um perdido?”.
“Não não! Eu falei errado...”, justifica-se ela, enquanto percebe que ele volta
a manobrar para colocar o carro no mesmo lugar anterior.
Ufa!
Tudo está resolvido. Meu caro leitor ou ouvinte, permita-me contar agora a
reação de Odranoel, com seus 16 quase 17 anos, ao saber do final feliz do
resgate de seu pai. A mãe liga, informa a boa notícia, e ele simplesmente diz:
“Amém!”. Olha, partindo do Oel (apelido de Odranoel), este “amém” representa
muita coisa mesmo, pode ter certeza.
E
assim acaba a odisseia da família Avlis Onerom, só para comprovar que um
simples passeio no mercado municipal da cidade de São Paulo nem sempre é tão
simples assim...
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