sábado, 21 de dezembro de 2019

2019, ANO INSANO

Nem sei por onde começar. O arsenal de insanidades neste primeiro ano de governo do meu violentado Brasil é enorme. Então o desafio é ainda maior, pois pretendo condensar tudo em no máximo 250 palavras, tamanho usualmente empregado para os microcontos. Mas não vai dar, eu sei. Então peço ao leitor que não me critique se este microtexto não comportar todas as asneiras governamentais. A culpa não é minha...
Não repare também na cronologia, pois lançarei aqui as atrocidades sem preocupação com a ordem temporal.
Aqui vai, abre aspas geral:
A Amazônia não está pegando fogo, até porque a floresta é úmida, não tem como pegar fogo.
Tem muito formado aqui em cima dessa filosofia aí do Paulo Freire da vida aí, esse energúmeno aí, líder da esquerda.
Quando se fala, por exemplo, de poluição ambiental, é só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida também, tá certo?
Você concorda com o seu chanceler, de que o nazismo foi um movimento de esquerda? Resposta: “Não há dúvida, né? Partido Socialista... Como é que é? Partido Nacional Socialista da Alemanha”.
Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a ANCINE.
Questão ambiental só importa aos veganos que comem só vegetais.
Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade.
Para o presidente Trump: “I love you”.
Enquanto eu for presidente, não tem demarcação de terra indígena.
Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar...
Chega! Fecha aspas geral!
Vou poupá-los!

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

CAMARADA VENTO

Era uma vez um tornado que, na sua passagem, destruiu todas as humildes casas e casebres de um pobre vilarejo. Também destruiu um magnífico palácio daquelas redondezas. Esqueceram de avisar o vento que ali vivia o rico e poderoso rei, que sobre tudo e todos governava. Porém, de nada adiantaria avisá-lo, pois, pelo que sei, o camarada vento trata todos igualmente...

sábado, 26 de outubro de 2019

BARCO + MAVERICK = AQUARICK

Abro o portão. Entro. Caminho pelo quintal lateral. Do meu lado esquerdo, o canteiro gramado. Folhagens e folhas, todas bem cuidadas. À frente vejo-os sentados, na lavanderia, tomando o sol da manhã.
Papai, com 95. Mamãe, 92. Uma parte da Dona Rosália já está no “outro lado”. É assim mesmo. O Alzheimer vai levando aos poucos. Já com seu Francisco, sua mente está bem mais preservada que a da esposa, se bem que ele já esqueceu uma porção de coisas...
Resolvo testar:
– Pai, o senhor lembra do Aquarick?
Depois de repetir várias vezes a pergunta, para driblar a surdez trazida pela idade, acabo constatando que esta é mais uma lembrança perdida... E olha que procuro outras referências:
– Aquele barco que o senhor inventou? Que foi feito sobre o chassi de um Maverick, com tambores para flutuação? Um anfíbio, que andava na água e na terra, para resgatar as vítimas da enchente? Lembra que o senhor fez um teste na represa?
Nada.
É um tanto frustrante... Ele, que inventou tantas coisas na vida, de vez em quando se perde na própria casa, não encontra o banheiro, o quarto...
Baixo os olhos. Ao levantá-los, miro o rosto de minha mãe. Está tranquila. Sorrio para ela. E ela me retribui com um lindo sorriso, que faz tudo ter sentido. Mesmo que ela não se lembre mais de mim. Mesmo que o meu pai não se lembre mais do Aquarick e nem de todas as suas outras maravilhosas invenções...

sábado, 12 de outubro de 2019

MEU MAIOR DESEJO

Ansiedade. Não vejo a hora de saber o tema do novo desafio de microcontos. Chego no serviço e, no computador, já abro uma aba na página do SWEEK. Nada. Deixo a aba aberta e, de vez em quando, vou lá e dou uma atualizada. O nada continua. E o trabalho se arrasta, mergulhado na expectativa.
Até que uma atualizada revela o novo post. “7 minutos”, é o tempo da publicação. “Saiu agora pouco!”, exclamo em pensamento. Pronto, já tenho o tema!
Desejo.
Volto ao serviço, mas não por muito tempo, pois tenho que interromper novamente. Número 2. Desculpe-me, leitor, por entrar em assuntos de excreção. Mas, pensando bem, não há mal nenhum nisto. Afinal, pertence à nossa natureza.
Sentado no trono.
“Desejo... Que história posso escrever com este tema?”.
Alguns segundos se passam. Força abdominal.
“Um sujeito que pode realizar todos os seus desejos, magicamente...”.
Dou aquela olhada básica: a obra está feita, boiando.
“Nada disso! Plágio daquele filme... O Todo Poderoso.”.
Descarga. Aproveito o momento para buscar alguma inspiração.
“Lâmpada mágica. Três desejos... Último desejo: quero ter infinitos desejos atendidos... O cara derruba o limite do gênio...”.
Papel higiênico, corto, dobro, começo a limpar.
“Não, desejos sem fim é muito... Nem sei como acabar essa coisa...”.
Uma ideia, desisto da ideia, uma limpada naquele lugar, e assim por diante...
Até que o papel acaba. Mas ainda falta limpar bastante! E agora?
De repente, todas as ideias e desejos ficam pequenos diante do meu maior desejo neste momento: papel higiênico!

terça-feira, 27 de agosto de 2019

SER BOM, INFELIZMENTE, ESTÁ FICANDO MAIS FÁCIL

Ser bom, infelizmente, está ficando mais fácil.
Em um mundo cheio de preconceito, no qual gays e lésbicas são cruelmente assassinados, quem simplesmente não apoia esta atrocidade, pode ser chamado de bom.
Em um mundo repleto de discriminação, no qual negros, índios e outros indivíduos são eliminados, tão somente porque pertencem a determinadas etnias, quem não concorda com este extermínio pode ser chamado de bom.
Em um mundo em que as pessoas ignoram ou temem os indigentes e pedintes, quem apenas consegue olhar para eles, este pode ser chamado de bom.
Em um país no qual a regra de conduta é levar vantagem em tudo, explorando os outros indiscriminadamente, aquele que não segue este preceito, pode ser chamado de bom.
Em um mundo no qual avançam governos totalitários, que adotam políticas que agravam enormemente a concentração de renda, e que combatem com as mais variadas forças e meios tudo que estiver no seu caminho, quem ousar pensar em democracia e menos desigualdades, este pode ser chamado de bom.
A gente está se acostumando... Se acostumando a ver um presidente que prende mães e filhos imigrantes, cruelmente separando-os por até milhares de quilômetros. Se acostumando a ver outro presidente que, durante a campanha eleitoral, ostentava uma arma imaginária nas mãos. Se acostumando a ver constantes violações de direitos humanos, principalmente dos menos favorecidos...
Não me tornei melhor. Ainda carrego meus defeitos, bagagem de um ser que ainda tem muito a evoluir. Mas, do jeito que o mundo está se tornando, até parece que eu sou bom.
Ser bom, infelizmente, está ficando mais fácil.
Só espero que o mundo não piore tanto a ponto de eu virar santo.

domingo, 4 de agosto de 2019

ONDE ESTÃO AS CHAVES DO PALÁCIO?

O ilustre escritor é convidado a subir ao palco e a tomar o seu devido lugar para proferir o esperado discurso:
– Minhas palavras serão breves e sem formalidades – emociona-se, olha para baixo. Falarei sobre minha bisavó, fonte inspiradora deste meu último trabalho. Batalhadora, migrante da região nordeste do país, sem estudo mas com muita sabedoria, impregnou sua personalidade na história da família.
– Meu avô, o mais velho dos seus cinco filhos, sempre nos falava do jeito alegre e brincalhão que ela tinha. Dizia que todas as vezes que chegavam em casa, ela olhava para os lados e perguntava: “Onde estão as chaves do palácio?”. Era uma moradia simples, conquistada graças ao programa de habitação popular. Também foi devido à iniciativa do governo, em um dos projetos da época que facilitava o acesso ao ensino superior, que ele formou-se em sociologia.
– Este meu novo livro percorre a trajetória de nossa família. Desde este longínquo tempo no qual tudo parecia estar melhorando, até os dias atuais. Passando por todas as turbulências e dificuldades, a história do país se mistura com a dos meus parentes...
– A ascensão do governo de ultradireita, com todos os seus retrocessos. A morte de minha bisavó, esquecida no corredor de um hospital público. O assassinato de seu filho mais novo, por ser preto e pobre – a voz fica embargada pela emoção. E assim por diante...
– Mas hoje, finalmente, a história de minha família pode ser contada. E a do nosso país também...

quinta-feira, 20 de junho de 2019

VELOCIDADE DA LUZ

O trem suburbano para na estação Tamanduateí. As portas se abrem. Pessoas saem da composição e outras entram. Fecham-se as portas. Na plataforma, alguns lamentam. Poucos segundos de atraso são a causa de eles estarem, agora, lá fora. Mas eu digo que não devem se lamentar, muito pelo contrário...
Boas vindas só são transmitidas no começo da linha, o que não é o caso. Sendo assim, surge, inesperadamente e com conteúdo muito estranho, a seguinte mensagem pelos alto-falantes dos vagões:
“Senhores passageiros, este trem tem como destino outra dimensão, não obedecendo parada intermediária em nenhuma estação. A CPTM deseja a todos uma boa viagem!”.
A grande maioria dos passageiros não percebe o quão bizarra é a informação, pois estão mergulhados em seus mundos virtuais, com os olhos pregados no celular.
A composição vence a inércia com o tranco normal. Continua a acelerar também de maneira usual. Até aqui, fora a doida mensagem da dimensão, tudo normal. Mas a aceleração continua...
Passam sobre o rio Tamanduateí, divisa entre São Paulo e São Caetano do Sul, em alta velocidade. “Agora tem que começar a frear”, é o que pensam os passageiros, que começam a despregar os olhos do celular. Só que o trem não freia. Acelera mais. Espantados, veem a plataforma da estação de São Caetano passar diante de seus olhos arregalados em poucos segundos.
Quando chegam em Mauá, já não conseguem distinguir as paisagens que, de tão rápido que passam pelas janelas, parecem um mesmo borrão. Desesperam-se e já imaginam o trem descarrilando ou espatifando-se em algum fim de linha qualquer.
E a aceleração continua aumentando absurdamente. Perto de Paranapiacaba, os incrédulos viajantes notam que o chão começa a se afastar. A composição está flutuando! No interior dos vagões, desorientação e comoção. Do lado de fora, na região muito pouco habitada, é provável que ninguém esteja vendo um trem voando e ganhando cada vez mais velocidade e altitude, deixando para trás e para baixo a serra do mar...
E a alucinante aventura dos passageiros continua, agora dando a volta em torno da Terra. Uma volta, duas, e assim por diante... Rumo à velocidade da luz!
(...)
Após esta impossível jornada, a composição desacelera, perde altitude, pousa suavemente no mesmo trilho e chega normalmente na estação Tamanduateí, que não é a mesma... Muito mais moderna...
Antes de abrir as portas, uma nova mensagem nos alto-falantes dos vagões:
“Senhores passageiros, agradecemos a participação em nosso pioneiro e audacioso projeto intitulado ‘Velocidade da Luz', cujo objetivo é desbravar novas fronteiras do conhecimento, alçando o nosso país ao mais elevado patamar científico do planeta. Sintam-se honrados por terem contribuído, mesmo que involuntariamente, para a realização desta gloriosa empreitada. Mesmo assim, não podemos deixar de pedir desculpas pela ligeira distorção do tempo, causada pela altíssima velocidade, próxima à da luz...”.
E, no exato instante em que as portas do trem se abrem, ouve-se:
“Sejam bem-vindos ao ano de 2136!”.
Enquanto poucos minutos se passaram para eles, aprisionados em um fantástico trem, na Terra passaram-se muitas décadas. Todos os seus entes queridos estão mortos.
Atordoados, os passageiros cambaleiam para fora do trem. Nem sequer percebem o arremate final da mensagem governamental:
“Tudo pelo bem da pátria!”.

segunda-feira, 27 de maio de 2019

O PALÁCIO DA MEMÓRIA

Rimeda esquece muito as coisas. A esposa cobra, fica brava. Ele se incomoda com o problema.
Fica sabendo da técnica “Palácio da Memória”. Aprofunda-se no estudo da mesma e resolve aplicá-la.
Para cada coisa que deseja memorizar, imagina seu Palácio Mental, e nele guarda o que não quer esquecer.
Conquista uma memória primorosa. Resolve aproveitar melhor a incrível capacidade, que aumenta a cada dia. Estuda, presta concurso público, passa, salário de marajá, padrão de vida invejável.
O tempo passa e Rimeda percebe os primeiros sinais de descontrole. Sua mente não para de armazenar. Acordado ou dormindo, o palácio acumula informações. Demais, desnecessárias... Tudo é guardado, automaticamente. Não consegue parar.
A situação fica insuportável, psicológica e emocionalmente...
Até que tem uma ideia e nela deposita todas as esperanças. Tarde de sábado, sozinho em casa, larga-se na cama, entra no palácio mental, reserva um novo quarto, para guardar somente as coisas mais importantes... E coloca fogo em todo o resto! O processo dura horas, consome muita energia, pois ele desgasta-se muito tentando proteger o único quarto que não pode queimar. Em transe, perde a noção do tempo. Depois cai em sono profundo e segue dormindo até o dia seguinte.
Logo pela manhã, a esposa pergunta:
– Sabe que dia é hoje? – Questiona por força do hábito, pois, com certeza, ele sabe, agora não esquece mais nada. Ainda mais se tratando do aniversário de casamento...
Rimeda ficou muito contente e aliviado ao constatar que não se lembrou da importante data.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

DONA TERRA

Estava cansado. Gasto de tanta notícia ruim. Rompimento de barragem, Brumadinho, Mariana, pacote do veneno, agrotóxicos, aquecimento global, golpe, ditadura, militares, exploração desenfreada...
Desconectei-me de todas as mídias possíveis e fui ao encontro do meu filho de cinco anos, que havia acabado de deitar e que já reclamava, querendo uma estória para dormir.
Respirei fundo e comecei:
– Era uma vez um menino que cresceu tanto, mas tanto mesmo, que ficou do tamanho do planeta Terra...
Olhei para o seu rostinho e, onde esperava encontrar uma interrogação, notei sua curiosidade e expectativa. Os desenhos animados já o haviam preparado para entender este começo de história um tanto fora dos padrões. Assim sendo pude continuar:
– Então ele olhou para a Terra e perguntou: “Por que você está tão triste?”. Ela, com sua enorme cara redonda, respondeu: “Porque o homem está destruindo meus rios e oceanos, envenenando as plantas, acabando com os animais...”.
Silêncio. Não sabia mais como prosseguir.
Meu pequenino percebeu o impasse e atravessou: “Posso continuar, papai?”. Prontamente aceitei, contente. E sua doce vozinha me socorreu:
– Aí a Dona Terra falou assim: “Quer saber de uma coisa? Vou viajar pelo Espaço, até chegar bem perto de um planeta com bastante vulcão e dinossauro... Aí então toda gente ruim vai ter que nascer nesse outro planeta. Só vou deixar nascer gente boa em mim!”.
Seu sorriso infantil coroou este desfecho.
Fiquei perplexo, a pensar: “Seria bom que tudo fosse tão simples assim! E talvez até seja...”.

sexta-feira, 22 de março de 2019

HUMANIDADE DOENTE

Tive um sonho.
Sonhei que estava flutuando no espaço.
Via o nosso planeta Terra inteiro, todo de uma vez, uma bola que também flutuava no meio do nada.
Sobre aquela esfera, onde o azul e suas tonalidades deveriam abrigar a paz e o amor entre todos os seres que a habitam, acontecia justamente o contrário.
Então comecei a chorar...
Chorava pela humanidade doente. Sentia o agravamento da chaga do preconceito, da intolerância. Via atiradores exterminando os inimigos, os seus semelhantes. Filmando a ação e transmitindo ao vivo, pela internet. Matança de videogame na vida real.
Chorava pela juventude doente. Sentia o avanço da febre da loucura. Via jovens matando outros jovens e crianças, nas escolas, santuários do saber transformados em palcos do terror.
Tudo isto por baixo daquela capa de tonalidades azuis... Havia muito pelo que chorar ainda...
Governos autoritários, eleitos pelo povo mas contra o povo. Cercados por muros e distribuindo ódios. Alimentando a doença da humanidade.
A Terra esgotada, gasta de tanta exploração. Tudo pelo lucro, pelo dinheiro, pelo poder. Insanidade. Tudo isto tornará a Terra inabitável. E então do que adiantará o lucro, o dinheiro e o poder?
Chorava...
Pelas injustiças, pelas inversões de valores, pelo poder nas mãos dos maus.
Pelo meu planeta, pelo nosso planeta. Nossa morada, viajando pelo infinito. Carregando o fardo de abrigar uma espécie que não sabe viver em paz...
Foi quando, logo antes de acordar, ainda flutuando no espaço, olhei para a Terra e vi que ela também chorava.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

SR. IGNORED

Sr. Ignored não estava tendo um bom dia. Coisa normal. O que não foi normal, naquela segunda-feira logo cedo, a poucos passos da entrada do prédio onde ele trabalhava, foi encontrar, largada na sarjeta, uma lâmpada mágica. Para falar a verdade, isso não é normal para nenhum dia ou horário da semana.
Abaixou-se e recolheu o inusitado e inesperado objeto. Olhou para os lados, para ver se alguém estava lhe observando. Mas logo depois reconheceu a inutilidade do gesto, pois nunca ninguém lhe notava ou dava atenção. Já começava até a ter problemas com detectores de presença.
Manuseando a lâmpada, constatou que a mesma tinha, nela incorporada, algumas modernidades. Girou-a nas mãos e, antes de encontrar o “Made in China” que procurava, verificou que, na parte de baixo, havia algumas instruções. “Poxa, não podia ser como antigamente, mais fácil, só esfregar?”, foi o que falou para si mesmo, mas acabou seguindo as orientações. Baixou e instalou o “Genius da Lâmpida” no celular. Rodou o aplicativo, fez o cadastramento obrigatório e apontou a câmera para o QR Code da lâmpada... Tão logo o reconhecimento foi feito, uma fumacinha cinza começou a escapar da geringonça “tecnomágica”, o gênio apareceu, atento ao próprio smartphone que carregava na mão, e o Sr. Ignored adiantou-se:
– Seu Gênio, eu desejo não ser mais ignorado. Ninguém liga pra mim, parece que não existo! – e foi desfilando as suas queixas...
Depois do desejo exposto, a divindade, sempre concentrada em seu celular, disse:
– Repita, porque não ouvi nada.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

DESEJOS MORTOS

O pior desejo é o desejo morto. Quem tem desejo morto é Zé. Simplesmente Zé.
Houve tempo em que Zé desejava. Desejava tanto que se poderia até dizer que Zé “deZéjava”. Ficou engraçado. Mas esta é uma narrativa triste. Se coloco esta pitada meio cômica, é para amenizar o fardo de Zé.
Mas, como dizia, houve tempo em que Zé desejava, e muito. Porém cansou de desejar.
Desejava um bom emprego. No entanto, ao perder o que tinha, passou a desejar somente ter emprego. Contudo, como não encontrava, deixou corroer este desejo e lançou-se na luta pela sobrevivência, contentando-se com bicos esporádicos.
Desejava ter uma boa casa. Mas, quando não mais conseguiu pagar as prestações, trocou este desejo pelo aluguel, desejando poder honrar seus compromissos com o locador. Todavia, tal honraria não se fez possível. E então foi parar debaixo da ponte.
Desejava proporcionar conforto para sua família. Porém a família desintegrou-se, tão ou mais rapidamente que sua vida... Ficou só. Este desejo ficou sem endereço, não havia mais família.
Desejos ficaram para trás, cedendo lugar para as necessidades básicas. Sim, porque necessidades básicas são bem diferentes dos desejos.
Zé tornou-se algo. Ao revirar o lixo, as pessoas não distinguiam entre um e outro. Coisificou-se, totalmente ignorado, como algo que saiu fora da engrenagem econômica, como muitos outros Zés e não Zés...
Dentro de Zé havia muitos desejos. Agora não há mais nada. Nem identidade, nem sanidade, nem Zé. Somente desejos mortos.