quarta-feira, 27 de março de 2013

ESPANHÓIS E COMUNISTAS

Viro a esquina em direção ao barbeiro e digo para mim mesmo: “Em busca de ideia para uma crônica...”.
Antes de dobrar a próxima esquina, ouço o comentário de um senhor ao olhar as manchetes na lateral de uma banca de jornal: “Esse papa é simpático!”. Não, daqui não sai crônica. Na verdade, pode até sair... Mas não quero fazer.
Entro no barbeiro. Sr. Lauro, tradição, mobiliário antigo, rádio com música clássica... Aqui daria uma boa crônica. Mas fica para outra vez, talvez...
Um na cadeira, cortando o cabelo. Outro sentado, esperando. Sento e, na cadeira ao lado, procuro uma parte do jornal para ler. Primeira página do Diário do Grande ABC. Processamento de lixo reciclável, preço da Zona Azul, desafios dos times de futebol da região. O São Caetano tá tão mal que nem tem nada dele. Notícia de jornal pode puxar um bom texto. Mas não, não é isso que eu estou buscando.
Sai o sujeito da cadeira do barbeiro, outro toma o seu lugar. Agora eu sou o próximo. E já tem gente atrás de mim, está ficando cheio...
De repente começo a ouvir o Sr. Lauro dizer: “... Acho que vocês são parentes. Ele é filho do Seu Francisco...”. Estas palavras são dirigidas à pessoa que está cortando o cabelo, mas fazem referência à minha pessoa. Então levanto-me e digo: “Eu sou filho do Seu Francisco...”. Pronto! O barbeiro, profundo conhecedor da família Moreno, acaba de fazer a ligação entre dois parentes distantes. E, de quebra, dá assunto para a crônica. Agora vai! Recordações, origens familiares, parentes conhecidos em comum, tudo isto vale a pena registrar... E que fique aqui registrado: a minha crônica está começando agora!
Após os primeiros momentos de “filho de quem”, “neto de quem”, “irmão de quem” e outros “quem” mais, acabamos por situar o nosso grau de parentesco. Isto depois de várias confirmações e repetições, coisa comum em situações deste tipo. Para facilitar ao leitor a navegação pela árvore genealógica, peço para que imagine, nos idos do começo do século passado, dois irmãos e imigrantes espanhóis. Cada um deles constitui sua própria família. Um deles, Francisco, tem seu segundo filho, também Francisco, que é o meu pai. O outro irmão, Antonio, tem uma filha chamada Josefa, mãe de outro Antonio, que é justamente quem está conversando comigo. Pensando bem, acho que não somos parentes distantes... Ou pelo menos nem tanto.
Vamos falando de familiares conhecidos, tecendo nossos comentários:

“(...) O Milton tinha um coração muito bom. Entrou na bebida e nas drogas, se envolveu com maus elementos. Mas tinha um coração muito bom. Foi bom pra todo mundo, menos para ele mesmo (...) O Vicente vendia um bar pra comprar outro. Ele teve um no final da Maranhão, na esquina. Também chegou a ter em frente à GM, na Tiradentes. O Seu Lauro disse que ele vinha de sábado, bem cedo, cortar o cabelo... É, depois que o filho morreu, ele caiu bastante (...) O Vande morreu cedo. Deu uma melhorada por um tempo, ficou uns dois ou três anos bom, depois... Essa doença é (...) O Antonio (mais um Antonio na família), ele queria matar o cara que viciou o filho. Ele foi vereador, pelo Partido Comunista, duas vezes (...) ”.


Para o leitor, estas recordações são recortes que talvez não formem uma figura coerente. Pode haver confusão entre os personagens e as lacunas no texto, é possível que elas esvaziem o pouco conteúdo que consigam apreender. Mas não tem problema, pois sei que fios de vida passam através destas linhas escritas. São fios que, de uma maneira ou de outra, acabam participando de todas as famílias...
O papo começa com o Antonio sentado na cadeira do barbeiro e eu em pé, ao seu lado. Depois as posições são trocadas e o papo continua. E prossegue no bar ao lado, acompanhado de um cafezinho. Ele me conta do seu avô comunista, irmão de meu avô por parte de pai. Diz que ele recebia revista do partido, diretamente da Rússia. E que quando chegava a “batida”, ele se escondia no forro da casa. Então falo do meu avô por parte de mãe, também comunista, e do seu trágico fim, assassinado por anticomunistas em uma questão de divisa de terras que foi criada para acobertar a real motivação política do crime. E, com relação à política atual, compartilhamos nossa repulsa endereçada ao ex-prefeito da cidade...
Ele me fala de um tal Chevrolet 1928, que era do Lourenço. “Tio Lourenço” surge em minha mente como um nome presente nas estórias da família. O Chevrolet, nunca o vi, mas ao ouvi-lo contar como uma recordação tão viva, chego até a ver o brilho de sua lanterna...
No mesmo dia, vou à casa dos meus pais para falar a novidade. Como meu pai não está, exponho o acontecido somente para minha mãe. Ela ouviu com atenção e alegria. Raízes familiares fazem bem para todo mundo, principalmente quando vamos ficando mais velhos...
E, para finalizar esta crônica, fico sabendo de uma relação que liga os nossos avôs... Depois de ouvir-me, minha mãe diz que o pai dela e o avô do parente encontrado no barbeiro eram amigos, encontravam-se... Então fico a imaginar os dois, nas primeiras décadas do século vinte, interior paulista, reunidos com outros companheiros de ideal, na esperança de, através do comunismo, mudar o mundo...