sábado, 26 de dezembro de 2020

O PLANEJAMENTO DA PANDEMIA DO COVID-19

 Vamos voltar no tempo. Estamos no dia 13 de agosto de 2019. Quanto ao local, espero que não seja familiar para nenhum leitor... É onde costumam acontecer as reuniões de cúpula do ministério dos diabos, em algum lugar do inferno. O diabo rei abre a sessão:

– Meus caros ministros e ministras, fiz esta convocação de emergência porque estamos enfrentando uma crise em nosso reino demoníaco. Como vocês já devem estar sabendo, nossos recursos estão diminuindo. Então a ordem, agora, é fazer mais com menos. O cronograma do apocalipse está atrasado. Infelizmente, esta nossa lerdeza em acabar com o mundo está fazendo com que muitas pessoas comecem a acreditar que os tempos difíceis estão chegando ao fim. Falam até em nova era, renovação, mundo melhor, todas essas baboseiras! Ora essa! Mas vou direto ao ponto porque não podemos perder tempo. Preciso que vocês me apresentem projetos de destruição, que sejam baratos e eficientes!

Neste momento, todos olham para o ministro das Catástrofes, que é quem geralmente toma a frente nestas ocasiões. Então ele levanta os seus faiscantes olhos vermelhos, mas de uma maneira meio receosa, e começa:

– Ilustríssimo diabo rei, como vossa majestade deve se lembrar, em 2004, no maior tsunami de todos os tempos, conseguimos obter um bom resultado: mais de 230 mil mortos. Coloco-me à disposição caso queira fazer algo parecido...

– Nada feito! – interrompe o diabo rei. Em que ponto da simples frase em que eu disse “nossos recursos estão diminuindo” ou “fazer mais com menos” você dormiu?!? Ninguém quer mexer com placas tectônicas agora. Sai caro e demora muito! Aliás, nossa crise começou justamente quando o seu ministério queimou todo o orçamento da década nesse tsunami. Essas obras faraônicas causam grande impacto, mas são pouco eficientes, a relação custo-benefício é ruim. Quero algo que cause uma grande desgraça sem gastar muito e com pouco esforço.

Por alguns segundos, todos ficam quietos. Parece que ninguém consegue ter uma ideia a altura do desafio proposto. Quem rompe o silêncio é a ministra da Tentação. Com seu gestual magnetizante e suas curvas perfeitas, começa a falar:

– Meu docinho quente e fofo – diz estas primeiras palavras olhando para o diabo rei. Sabes muito bem que eu sempre faço tudo para me infiltrar em todas as mentes para mergulhá-las no deleite das tentações. Com isso venho conquistando, no varejo, grandes progressos. Não atuo no atacado, como o ministro das Catástrofes. Prefiro agir assim, pontualmente. Mas tenho a dizer que, muitas vezes, fico surpresa com os resultados obtidos. O ser humano, de vez em quando, supera minhas expectativas.

– Sim, sim, minha magnífica ministra ­– o diabo rei, agora, suaviza a expressão. Sempre admirei o seu trabalho, desde a maçã e o paraíso de Adão e Eva. Você vem exercendo o seu ministério com extrema competência. Acho que vou te dar um aumento. Depois desta reunião, dê uma passadinha em meu gabinete, para tratarmos do assunto.

Nesta hora, alguns deixam escapar um sorriso malicioso, outros ficam um tanto indignados: “Como assim promoção?!? Não estamos mais em uma crise financeira?”. Só pensam. Não ousam enfrentar a autoridade do diabo rei. E, para acabar com este clima e prosseguir com o assunto da reunião, a maior autoridade do mal retoma a palavra:

– Você, ministro das Pestes e Pandemias, o que tem a dizer? Anda meio parado ultimamente, hein? Acho que seu último trabalho de relevo foi por volta de 1920... Como era mesmo o nome?

– Gripe espanhola – ergue a voz, um tanto tímido, o ministro bola da vez do momento.

– Isso! – o diabo rei exclama. Que tal você mostrar serviço e fazer jus ao salário de ministro que eu lhe pago? Quero uma pandemia! Não uma pandemiazinha, como a que você fez há uns dez anos... A... H1...

– H1N1, gripe suína... – outra vez completa o ministro das Pestes e Pandemias, intimidado.

– Não, nada disso, quero uma senhora pandemia! – ordena a diabólica majestade diabólica.

A esta altura, a reunião se inflama. Dá para imaginar? Uma reunião inflamada de diabos, que já são inflamados... Seria isto um pleonasmo? Bom, não importa. O fato é que cada um passa a dar a sua opinião ou contribuição. O ministro das Desgraças Extraordinárias é o primeiro:

– Que tal fazer uma pandemia assim: um vírus tão potente que, transmitido pelo ar como uma gripe, seja muito mais intenso e letal. Tipo assim, apenas alguns segundos de exposição, sem máscara, e aí o sujeito já bateria as botas!

– Não, não! Desse jeito vai espantar! – retruca o ministro da Anticiência e Negacionismo. Atualmente contamos com um contingente bastante expressivo de idiotas que são contrários às mais consagradas evidências científicas, combatendo, por exemplo, o uso de vacinas ou até dizendo que a Terra é plana. Esse tipo de gente é muito útil em pandemias, pois erguem cruzadas contra as vacinas, não usam máscaras... Enfim, estão do nosso lado! Mas se a gente criar um vírus tão potente que fique inegável a sua atuação mortífera em poucos segundos, assim desse jeito a minha legião de negacionistas vai passar a usar máscaras e até tomar vacina... Não pode ser assim tão ostensivo, entendem? Eles têm que pensar que é somente uma gripezinha, tá ok?

– Isso mesmo! – a ministra da Tentação volta a participar. E podem deixar comigo, que eu vou atuar principalmente junto aos jovens, meu público predileto. Farei com que eles se aglomerem bastante, com tentações direcionadas para as baladas!

Neste instante, o ministro das Pestes e Pandemias contribui com uma boa ideia:

– E eu posso criar um vírus com letalidade maior entre os mais velhos ou com comorbidades. Aí tudo se encaixa! Os mais novos se aglomeram e matam os mais velhos!

– Aí sim, hein? Gostei de ver! Pelo jeito, tu só trabalha de cem em cem anos! – dispara o diabo rei, arrancando gargalhadas de todos. Então, pelo que estou vendo, está se desenhando um projeto que será tocado por três ministérios: Pestes e Pandemias, Anticiência e Negacionismo, e Tentação. Quero uma integração perfeita entre vocês três, estão entendendo?

– Sim, meu fofo ardente e doce! Como sempre, darei o meu melhor. Vou agir também no consumismo, com várias tentações de compras, pegando aquelas pessoas que adoram bater pernas, fazendo com que se amontoem nos shoppings e nos mercados de rua. Também vejo grandes possibilidades no ramo turístico. Afinal, quem resiste a um belo pacote de viagem com aquele descontão de ocasião?

– Ocasião da pandemia! – brinca o ministro das Desgraças Extraordinárias. E todos riem novamente.

Tudo parece estar perfeito neste plano literalmente diabólico. Porém, tem sempre alguém que consegue achar algum defeito. É o ministro da Lei de Murphy:

– Mas o que vamos fazer com aqueles presidentes ou presidentas que, dentro dos seus governos terrivelmente bons, consigam fazer extensas campanhas de conscientização para combater a pandemia, implementando mecanismos para atenuar toda a gravidade das desgraças que a gente quer ver? O que vamos fazer com eles?

– Não precisamos nos preocupar com eles! – sentenciou o ministro do Apocalipse, com ar vitorioso. Vamos concentrar nossos esforços naqueles que estão do nosso lado, pois eles serão capazes de fazer um bom estrago. A nação mais poderosa do planeta tem um presidente que está alinhado com a gente. Mais abaixo, no maior país do hemisfério sul, entrou este ano um presidente velho conhecido meu, desde quando, na década de oitenta, ele quis explodir um quartel. “In Bolsonaro we trust” – com esta frase, dita com vigor, fecha sua argumentação.

E todos os diabos riem, felizes da vida!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

PIM

Pim é uma pomba-rola muito curiosa. Adora ciscar o chão a procura de algo que lhe sirva para colocar goela abaixo. Quando está ciscando em grupo, é sempre a primeira a encontrar as melhores coisas para comer. As outras pombas-rolas vivem admirando a sua habilidade: "Nossa Pim! Você é boa mesmo, hein?". Mas também a advertem de vez em quando: "Você tem que tomar cuidado! Se mete em cada lugar!".

E assim a vida para Pim segue normalmente, até que em uma tarde ela decide ir para um quintal muito bonito, cheio de árvores, lugar que ela já conhece por ter ido algumas vezes. Só desta vez não quer ninguém por perto. Assim pode ciscar à vontade, sem outras pombas falando para ela tomar cuidado e não se enfiar aonde não deve.

Assim que chega, logo nota um objeto diferente. Bom, neste ponto eu preciso explicar que este objeto é um vaso de vidro, em forma de cubo, sem terra nenhuma, que o Seu Rimeda limpou e deixou de cabeça pra baixo, sobre umas pedras chatas e redondas que são usadas para pisar no quintal. Preciso explicar também que o espaço entre a boca do vaso e o chão de terra é muito pequeno. E dizer que é bom a Pim não se meter a fuçar lá embaixo, senão...

Mas a gente conhece como é a Pim, não é mesmo? E lá vai ela, explorar a novidade. Cisca perto da boca do vaso e, ao encontrar algo que lhe interessa lá dentro, não vê mal algum em enfiar a cabeça por baixo da borda de vidro para pegar. Segura com o bico e... O tal negócio escapa e vai parar mais para dentro ainda! Ela não tem dúvida. Contorce ainda mais o corpo e, com muita vontade, estica-se para pegar novamente, até que... Oh meu Deus! Pim está presa dentro do vaso!

Como é de vidro e dá para ver tudo lá fora, ela pensa que dá para atravessar. Coitada! Não sabe que vidro engana os pássaros, a gente enxerga tudo, passa a luz por ele, mas ninguém consegue passar!

Então ela se desespera dentro do vaso, bate as asas, bate de tudo quanto é jeito nas paredes e no teto. Se cansa, para um pouco e, cada vez mais assustada, volta à sua luta para escapar!

O tempo vai passando, começa a escurecer. No mesmo quintal, por trás de uma cerca, mora um velho cachorro, o Bob. Mas Pim pode perder as esperanças, pois, por mais que ela bata as asas no vidro, ele não vai latir para chamar seus donos... Porque se Seu Rimeda aparecesse, poderia lhe salvar, tirando-lhe o vaso de cima. Mas que nada! O barulho que ela está fazendo não chama a atenção do cachorro. Além do mais, o Bob, pela idade avançada, anda meio molengão e dorminhoco, se depender dele, a nossa Pim terá um trágico fim.

Na rotina da casa, o próximo horário em que alguém virá para o quintal,  será somente lá pelas onze da noite ou até mais, que é quando o dono dá ao cão um quitute com o remédio no meio,  tira os cocôs que ele fez, joga água no xixi, etc. Até lá, Pim, pelo grau de desespero em que se encontra, não suportará...

Mas ainda bem que existem anjos da guarda, porque, se assim não fosse, esta história não terminaria nada boa...

Neste mesmo dia, Dona Sarima havia lavado os dois panos felpudos que o Bob deixa dentro da sua casinha, para aconchegar-se enquanto dorme. E, usando justamente este fato, o anjo da guarda entra em ação. Vai lá no ouvido da Dona Sarima e lhe assopra um pensamento: "Os cobertores do Bob!".

Então ela fala para o marido:

– Nossa! O Bob tá sem os cobertores dele! Acho que já secou. Tem que colocar...

Aí o que o Seu Rimeda responde deixa o anjo da guarda com as penas das asas em pé!

– Que nada! Que frescura para um cachorrão vira-lata! Ele pode ficar um dia sem isso...

Para a sorte da Pim, Dona Sarima não liga para o que o marido disse e sai em busca dos cobertores. Logo depois que os colocou dentro da casa do Bob, ouve um barulho e, um tanto assustada, chama o Seu Rimeda. Ele procura descobrir de onde vem o som e logo acha a nossa pobre Pim, desesperada, batendo as asas contra as paredes do vaso de vidro!

Rapidamente ele levanta a prisão da agoniada ave que, ao ver-se livre, voa para longe...

Bom, agora que tudo acabou bem, acho que, depois deste apuro, Pim não vai ser tão curiosa...

domingo, 1 de novembro de 2020

MEU NOME É MEDO

Meu nome é medo. Acompanho o ser humano em toda a sua existência. Mas não limito minha presença a esta única espécie. No maravilhoso leque das inúmeras criações da natureza, estendo o meu sufocante abraço sobre muitas variedades de seres vivos.

Mas é com o homo sapiens que a minha relação é muito mais complexa. Só para se ter uma ideia, basta dizer que estes seres têm a capacidade de sentirem medo de sentirem medo. Conseguem ficar em permanente estado de expectativa, aguardando minha aparição. Chamam isto de ansiedade.

E quando apareço, têm as mais variadas reações. É nestas horas que as pessoas se mostram como são. Pode parecer maldade de minha parte, mas acho engraçado quando, na hora-h, o sujeito deixa ruir tudo aquilo que ele pensava que era...

Culpam-me por muitas reações impensadas, feitas em meio ao desespero, mas isto é uma injustiça, pois não sou eu quem as faço. Não tenho culpa se esta classe de ser vivente não consegue comportar-se melhor em minha companhia. Apenas faço o meu trabalho.

Minha função é salvar o homem de muitos apuros. Para não caírem em um poço, não baterem o carro, não apanharem do inimigo e assim por diante. Dão-me até um adjetivo para estas situações, pois dizem que nelas há o tal “medo bom”.

Mas, para os chamados outros tipos de medos, os humanos não gostam de mim, abominam-me. Mal sabem eles que a causa está neles mesmo! É um tanto difícil de explicar... Contudo vou contar o que acontece, talvez assim fique mais claro.

Às vezes cismo de dar uma abraçadinha em alguém, só pra me divertir um pouco. Porém, quando já estou me afastando, o sujeito me atrai, me alimenta, entende? Aí eu volto e aperto um pouco mais o abraço, é assim que funciona. Há aqueles que nem precisam da minha cutucada inicial, vivem a me chamar. É contraditório! Sofrem comigo, mas não me querem longe!

E assim vou vivendo minha vida, tendo como missão principal fazer com que os seres não percam as suas vidas antes do tempo. Sim, porque vocês não têm o privilégio que tenho, pois, afinal, eu sou eterno!

sábado, 3 de outubro de 2020

REFLEXO

Estou no banheiro, em pé, em frente ao vaso sanitário. Ao alívio de esvaziar a bexiga segue-se a aparição de uma barata. Vem de trás do pedestal do lavatório. Corre, em uma trajetória curvilínea, e estanca, ainda perto do pedestal. É pequena. Então penso que deve se tratar de um ser jovem.

Com os olhos cravados no indesejado inseto, dou o laço no cordão da bermuda. Não sei o porquê, talvez a ciência ainda explique um dia, mas algo faz com que as baratas paralisem quando lhes pregamos a vista. Não é garantia. Às vezes falha. No entanto, algo as prende com o nosso olhar.

Realizo o movimento de me abaixar, com o braço esticado em busca do chinelo que está no pé. É um momento crucial. “Agora ela escapa”, é o pensamento que surge em minha mente. Pego o chinelo e me preparo para o ataque. “Poxa, que bom, ainda está no mesmo lugar!”, outra vez a voz interior do caçador de insetos.

Aproximo a sola do chinelo até a distância exata. Se for mais longe, torna o movimento mais demorado, aumentando assim as chances da presa. E, se for mais perto, acaba espantando a caça antes do bote. Concluo esta etapa também com sucesso.

A preparação para o golpe fatal envolve mentalização. Explico. Imagino a “ida” e a “volta” do chinelo. Concentro-me no ato concluído. Só existe a cena do movimento finalizado. Crio uma tensão e ansiedade... Como só existe a ação terminada, este estado mental faz com que meu braço se movimente tão rápido como um salto no tempo...

PLAFT!

Sucesso!

Agora o “eu caçador” fala em voz alta:

– Você tem que melhorar o seu reflexo... 

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

EFEMERÓPTERO

Sou uma das espécies de animal que menos vive no mundo. Na verdade, eu já vivi antes, mas sob formas diferentes. Comecei como uma ninfa, vivendo na água por um ano. Depois subi à superfície e me transformei em um subimago. Nesta nova forma, voei e pousei sobre a vegetação. No dia seguinte, ou seja, hoje de manhã, passei por outra transformação, e aqui estou eu! Mas não tenho consciência destas duas existências anteriores, então, para mim, vale mesmo esta vida de inseto na qual me encontro. Ah, você deve estar se perguntando como eu sei destas coisas... Mas você também não sabe que viveu na barriga de sua mãe? E por acaso se lembra desta vida em que vivia mergulhado dentro do útero? Acho que isto nos coloca em situações meio que parecidas, mas nem tanto... Afinal sua vida será, em média, de uns 28.000 dias, enquanto a minha será de apenas um dia.

Enquanto você ocupa seus milhares de dias com coisas como crescer, brincar, estudar, trabalhar, ganhar dinheiro, constituir família, ter filhos, se aposentar, e todas as outras milhares de coisas que têm aí no meio, enquanto isso eu só tenho um propósito em minha vida: acasalar. Agora os mais assanhadinhos ou assanhadinhas vão querer estar no meu lugar, hein? Mas é melhor pensar bem! Gostariam de uma existência assim tão breve? Só tenho a lhe dizer que, quando se tem tão pouco tempo de vida, cada segundo é importante!

Só para ter uma ideia, este tempo, em que estou falando contigo, representaria, se fosse em sua vida, uns 3 meses. Pois é, estou gastando o maior tempão nesta boa ação de lhe aconselhar... Então é esta a mensagem que gostaria que ficasse em sua mente: aproveite todos os instantes da sua vida!

Enquanto isso, aqui do meu lado, vou aproveitando! Acabei de ver uma fêmea que entrou agora no enxame! Não posso perder tempo! É com essa que eu vou!

sábado, 1 de agosto de 2020

DARWIN E O MOSQUITO

Onório deitou-se. Após poucos minutos, o mosquito começou a zunir em seu ouvido. Então ele colocou o espanta-mosquito, aquele que vai na tomada e esquenta uma pastilha. Para garantir, também colocou, em outra tomada, um aparelhinho que funciona com luz ultravioleta, que atrai e mata os insetos.
“Pronto! Agora tá resolvido”.
Mas não. Enganou-se. Não contava que este mosquito, o único que por ali rondava, por alguma inexplicável razão, não seria espantado pelo cheiro exalado pela pastilha. Algo em seu pequeno organismo garantia esta imunidade, um desvio genético lhe trouxe esta vantagem. E, para a desgraça de Onório, a vantagem também se estendia à ação da outra arma, conectada na outra tomada, pois a luz ultravioleta não exercia influência alguma sobre o enxerido zumbidor alado.
A única influência capaz de atingir o estranho e incomum inseto era a atração que orelha de Onório lhe provocava.
O tempo escoava, embalado pelos zunidos, uma serenata de amor de um mosquito apaixonado por uma orelha.
Imagine se este incomum inseto, acidentalmente dotado de uma genética que lhe garantia uma vantagem competitiva enorme, imagine se, ao procriar-se, passasse estes dotes aos descendentes... Seria o início de uma nova espécie... Um supermosquito! Uma verdadeira proeza da seleção natural de Darwin!
Mas Darwin não contava com a raiva, a explosão e o reflexo de Onório que, agarrando e girando o travesseiro no movimento em arco do braço, estatelou o mosquito na parede, esmagado pela fronha!

terça-feira, 16 de junho de 2020

ENTREVISTA COM O COVID

Olhei para aquele sujeito microscópico. Feio. Feito uma bola, cheia de bastonetes. Aproveitei a oportunidade e perguntei-lhe, pois, vai que ele tenha boca e fale...
– Qual é o seu nome?
Ele remexeu-se, balançando seus bastonetes e, para minha surpresa surge uma boca mole, em sua porção inferior, que fala:
– Nosso nome é Covid, Covid-19.
Estranhei a primeira pessoa do plural, mas isto não atrapalhou o entusiasmo. “Oba! Agora vou encadear uma porção de perguntas! Furo de reportagem!”, foi o que pensei.
– De onde que você veio?
– Tem gente que pensa que nós fomos feitos pelos chineses. Outros pensam que foram os americanos. Mas, na verdade, nós acreditamos que surgimos devido a uma intromissão do ser humano no habitat dos morcegos, lá em Wuhan, na China.
Ajeitei minha máscara (e ao mesmo tempo lembrei que não é bom ficar mexendo nela...), dei um passo para trás e, um tanto temeroso, prossegui:
– Já esteve em muitos lugares?
– Sim, estamos no mundo todo.
– Porque você sempre fala na primeira pessoa do plural?
– Somos uma coletividade... – neste momento, todos os seus bastonetes deram uma tremidinha, e eu imaginei que era uma espécie de comunicação com seus semelhantes. Meio impressionado, quis manter um clima ameno na entrevista:
– E de qual lugar você mais gostou? (...) Ou vocês mais gostaram?
– Nós gostamos mais aqui do Brasil!!! – a tremida dos bastonetes, desta vez, foi bem mais intensa.
– Por quê? Foi por causa das nossas praias ou do nosso povo hospitaleiro?
– Nada disso! Foi o seu presidente que nos ajudou muito, nos menosprezando, dizendo que éramos uma gripezinha. Conturbou todo o combate contra nós... Enquanto isso, nós fizemos a festa, e ainda estamos fazendo!!!
Lembro-me que foi nesta hora que pensei: “Ainda bem que a entrevista não é ao vivo, assim dá pra editar...”. Mas foi tudo muito rápido e acabou interrompendo este pensamento. A tal bola cheia daquelas coisas chacoalhou-se toda e saiu na disparada. Estava toda animada! Acho que iria continuar na sua festa!

terça-feira, 19 de maio de 2020

TÚNEL

Sensação de estar passando por um túnel. Só queremos chegar do outro lado. Sabemos que a travessia será muito difícil. Mas não sabemos quem serão os abatidos. Medo de perguntar uma pergunta sem resposta. Quem de nós? Quantos de nós? Serei eu? Algum ente querido?
Sentimos a dor dos que tombam. Final solitário, sem despedidas. Dor dos que ficam, em uma continuidade temerosa, perdida, sem chão.
Como se fosse um tsunami em câmera lenta, sabemos que muitos vão morrer, e não temos o que fazer. Uma onda de vírus, invisível.
Só nos resta ficarmos quietos, em isolamento social, tomando todas as medidas de precaução e higiene. Mas há aqueles que não seguem esta orientação para enfraquecer a onda. Não seguem por várias razões. Porque não acreditam, não enxergam a gravidade. Ou porque não podem. Por motivos econômicos ou de subsistência, não podem ficar em casa. Estes já subsistiam antes da pandemia, amontoados e sem condições de higiene. Ou porque acreditam que o seu direito de ir e vir, sua envernizada liberdade, vale mais que a vida da coletividade. Porque pensam que a desgraça só cairá sobre os outros. Ou porque seguem o seu presidente insano...
Não importa o motivo. Tudo isto é alimento para o vírus, para aumentar a onda de mortandade do tsunami invisível.
Aqueles que sentem ou vivem o peso desta onda, veem-se em um túnel.
E assim vou atravessando o túnel... Até quando? Não sei. Só sei que agora estou atravessando o túnel.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

MAU GOVERNANTE & POVO MAU

Na história da humanidade, sempre nos preocupamos com os maus governantes. Mas agora, ao viver na pele uma situação dramática do meu país, mergulhado na tragédia da pandemia e sob a falta de cuidado de um governo federal vergonhoso, começo a achar que muito mais perigoso que um mau governante é um povo mau.
Sim, um povo mau. Porque um líder não surge por acaso, do nada. Ele é a ponta de um iceberg. Sua personalidade é o reflexo de todas as camadas que o sustentam.
Não quero que este meu texto vire ferramenta de acusação de comportamentos condenáveis. Todos nós erramos. E alguém muito importante já disse que “aquele que não tiver pecado atire a primeira pedra”...
Mas eu fico muito decepcionado ao ver que em meu país ainda existem muitas pessoas...
Preconceituosas...
Torturadoras ou que toleram a tortura...
Que veneram ditaduras e autoritarismos...
Que se julgam ser mais do que os outros...
Que só estão interessadas em levar vantagem...
Que atacam tudo e todos que estiverem contra seus objetivos mesquinhos...
É este povo mau que sustenta o mau líder. Não adianta derrubar o mau líder. A maldade ficará, por um tempo, acéfala, sem um representante maior. No entanto em pouco tempo outro mau líder surgirá. É como uma cirurgia para extirpar um câncer, mas que não levou em conta a metástase.
Em que fim isto tudo vai dar?
Uma pandemia, ou qualquer outra grandiosa tragédia, tem o poder de transformar a humanidade... Só espero que seja para melhor!   

quarta-feira, 1 de abril de 2020

SEPARANDO O JOIO DO TRIGO

Era uma vez um planeta que girava em torno de uma estrela localizada na periferia de uma galáxia espiral. Nele vivia uma espécie de vida que se autodenominava “ser humano”. “Humano”, segundo o dicionário local, derivava de uma língua antiga. O significado para “humano”, segundo este idioma já morto, chamado latim, era “homem sábio”. Mas parecia que a sabedoria não era um dos principais atributos desta espécie, que estendia o seu domínio sobre todos os outros seres e elementos naturais do planeta, de uma maneira nada sábia, pois rapidamente, em nome da exploração e do lucro desmedido, exauria todos os recursos naturais da Terra (nome dado ao referido planeta).
No entanto houve uma ruptura. Depois que a Terra deu 2020 voltas ao redor do Sol (nome dado à estrela), segundo contagem iniciada na ocasião do nascimento de um dos principais líderes daquela espécie, começou uma pandemia.
O vírus espalhou-se rapidamente, e colocou em xeque os valores materiais, baseados no acúmulo de capital e na ganância, em contraposição aos valores humanos, calcados no amor e na solidariedade. Isto porque, para vencer a guerra contra o agente infeccioso, fazia-se necessário o isolamento social da espécie, a fim de conter o contágio, afetando assim todos os elementos produtivos das engrenagens econômicas vigentes.
O planeta era dividido em muitos países, e cada qual tomou as suas providências. Aqueles que nortearam suas decisões fazendo jus ao nome da espécie dominante, ou seja, segundo os valores “humanos”, superaram os catastróficos efeitos da pandemia de maneira relativamente rápida. Seus governos não hesitaram em rapidamente aplicar vultosos recursos monetários, no sentido de apoiar seus cidadãos em quarentena.
Infelizmente, porém, houve países cujos governos orientaram seus esforços no sentido de proteger o capital e a economia. Além disto, não souberam liderar seus povos e, em meio a tantas dificuldades, seus dirigentes adotaram atitudes mesquinhas e egoístas.
Acredito ser desnecessário detalhar o grau de destruição que o invisível vírus provocou nestes últimos países...
Pois é... O que estes seres, autodenominados “humanos”, habitantes de um planeta que girava em torno de uma estrela localizada na periferia de uma galáxia espiral, o que estes seres desconheciam é que, de vez em quando, acontece algo grandioso para colocar ordem nas coisas, para separar o joio do trigo, como costumava dizer aquele líder cujo nascimento provocou o marco das contagens das voltas da Terra ao redor do Sol.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A NOVA PLACA

Estou muito chateado com a nova placa do Mercosul.
Perfeito, entendo que é mais moderna, que traz mais segurança contra fraudes, que nos une a todos, “hermanos” da América do Sul, etc, etc, etc. Mas o que custava manter a sigla do estado e a cidade?
Uma de minhas diversões durante as viagens é ficar olhando as placas dos carros no estacionamento do hotel. É tão legal ver que tem gente que vem de tão longe! Aí penso na cidade, no estado, tento avaliar a distância... Dá uma sensação de grandeza, de admiração e orgulho por pertencer a um povo que se espalha por territórios tão longínquos, com diversidades tão maravilhosas!
Mas agora tudo isto acabou!
Outra distração que me agrada acontece quando, em minhas costumeiras caminhadas pelas redondezas do meu bairro, ando pela região dos terminais de distribuição de combustível, ou pelas portarias das fábricas, onde ficam estacionados muitos caminhões. Aí sim encontro grandes viajantes! Ouço sotaques, vejo costumes, chimarrão, alguns caminhoneiros cozinhando, com suas etnias tão distintas, cores, tamanhos, cabelos, um mundaréu de diversidade! E nesta hora, o que eu faço? Busco logo na placa da carreta de onde o sujeito vem. É uma aula de geografia, de sociologia!
Isto também acabou!
Mais uma coisa destruída. Hoje em dia é o que mais nós vemos. E só vai restando a saudade...
Saudades de uma antiga placa que dava a exata ideia de quão grande é o nosso país!

sábado, 25 de janeiro de 2020

FAN, A ELEFANTA DESENCANADA


Ilustração: Monise (minha filha) - @monisesmoreno

Meu nome é Fan e já vou dizendo que pra mim não tem tempo feio. Eu já chego chegando e vou logo ocupando todo o espaço a que tenho direito (e olha que não é pouco!).

Sabe, nunca tive muita paciência, mas de uns tempos para cá, depois que entrei na menopausa, a coisa piorou. Dá aquele calorão danado, parece que a gente vai derreter... Pois é, acho que eu não posso falar “a gente”, mas tudo bem! Então, continuando... Aí eu não quero nem saber, meto a tromba n’água, sugo tudo que posso, e depois esguicho por todo o meu corpo! Ah, que delícia!

Não importa onde eu esteja, não ligo, os incomodados que se mudem! Ou você acha que eu deveria pegar fogo? Que nada! Se espirrar água nos outros eu não estou nem aí!

Sou desavergonhada mesmo. Uso biquini com a maior naturalidade, em qualquer lugar! Afinal, o forno ambulante que levo comigo, dentro de mim, não tem local nem hora para acender!

Assim sou eu! Podem falar o que quiser! E olha que o pessoal fala mesmo. Mas o que eles estão pensando? Não é só quem tem as medidas certas, com tudo em cima, barriga negativa e coisa e tal, não é só essa turma que pode usar pouca roupa e dizer que tem corpo de praia. Ora bolas! Eu tenho um corpo em forma de bola e faço a praia onde estiver! E tenho dito! Assim está bom pra você?