Vamos voltar no tempo. Estamos no dia 13 de agosto de 2019. Quanto ao local, espero que não seja familiar para nenhum leitor... É onde costumam acontecer as reuniões de cúpula do ministério dos diabos, em algum lugar do inferno. O diabo rei abre a sessão:
– Meus caros ministros e ministras, fiz esta
convocação de emergência porque estamos enfrentando uma crise em nosso reino
demoníaco. Como vocês já devem estar sabendo, nossos recursos estão diminuindo.
Então a ordem, agora, é fazer mais com menos. O cronograma do apocalipse está
atrasado. Infelizmente, esta nossa lerdeza em acabar com o mundo está fazendo
com que muitas pessoas comecem a acreditar que os tempos difíceis estão chegando
ao fim. Falam até em nova era, renovação, mundo melhor, todas essas baboseiras!
Ora essa! Mas vou direto ao ponto porque não podemos perder tempo. Preciso que
vocês me apresentem projetos de destruição, que sejam baratos e eficientes!
Neste momento, todos olham para o ministro das Catástrofes,
que é quem geralmente toma a frente nestas ocasiões. Então ele levanta os seus faiscantes
olhos vermelhos, mas de uma maneira meio receosa, e começa:
– Ilustríssimo diabo rei, como vossa majestade deve
se lembrar, em 2004, no maior tsunami de todos os tempos, conseguimos obter um
bom resultado: mais de 230 mil mortos. Coloco-me à disposição caso queira fazer
algo parecido...
– Nada feito! – interrompe o diabo rei. Em que
ponto da simples frase em que eu disse “nossos recursos estão diminuindo” ou “fazer
mais com menos” você dormiu?!? Ninguém quer mexer com placas tectônicas agora.
Sai caro e demora muito! Aliás, nossa crise começou justamente quando o seu
ministério queimou todo o orçamento da década nesse tsunami. Essas obras
faraônicas causam grande impacto, mas são pouco eficientes, a relação
custo-benefício é ruim. Quero algo que cause uma grande desgraça sem gastar muito
e com pouco esforço.
Por alguns segundos, todos ficam quietos. Parece
que ninguém consegue ter uma ideia a altura do desafio proposto. Quem rompe o
silêncio é a ministra da Tentação. Com seu gestual magnetizante e suas curvas
perfeitas, começa a falar:
– Meu docinho quente e fofo – diz estas
primeiras palavras olhando para o diabo rei. Sabes muito bem que eu sempre faço
tudo para me infiltrar em todas as mentes para mergulhá-las no deleite das
tentações. Com isso venho conquistando, no varejo, grandes progressos. Não atuo
no atacado, como o ministro das Catástrofes. Prefiro agir assim, pontualmente.
Mas tenho a dizer que, muitas vezes, fico surpresa com os resultados obtidos. O
ser humano, de vez em quando, supera minhas expectativas.
– Sim, sim, minha magnífica ministra – o diabo
rei, agora, suaviza a expressão. Sempre admirei o seu trabalho, desde a maçã e
o paraíso de Adão e Eva. Você vem exercendo o seu ministério com extrema
competência. Acho que vou te dar um aumento. Depois desta reunião, dê uma
passadinha em meu gabinete, para tratarmos do assunto.
Nesta hora, alguns deixam escapar um sorriso
malicioso, outros ficam um tanto indignados: “Como assim promoção?!? Não
estamos mais em uma crise financeira?”. Só pensam. Não ousam enfrentar a
autoridade do diabo rei. E, para acabar com este clima e prosseguir com o assunto
da reunião, a maior autoridade do mal retoma a palavra:
– Você, ministro das Pestes e Pandemias, o que
tem a dizer? Anda meio parado ultimamente, hein? Acho que seu último trabalho
de relevo foi por volta de 1920... Como era mesmo o nome?
– Gripe espanhola – ergue a voz, um tanto tímido,
o ministro bola da vez do momento.
– Isso! – o diabo rei exclama. Que tal você
mostrar serviço e fazer jus ao salário de ministro que eu lhe pago? Quero uma
pandemia! Não uma pandemiazinha, como a que você fez há uns dez anos... A...
H1...
– H1N1, gripe suína... – outra vez completa o
ministro das Pestes e Pandemias, intimidado.
– Não, nada disso, quero uma senhora pandemia! –
ordena a diabólica majestade diabólica.
A esta altura, a reunião se inflama. Dá para
imaginar? Uma reunião inflamada de diabos, que já são inflamados... Seria isto
um pleonasmo? Bom, não importa. O fato é que cada um passa a dar a sua opinião
ou contribuição. O ministro das Desgraças Extraordinárias é o primeiro:
– Que tal fazer uma pandemia assim: um vírus tão
potente que, transmitido pelo ar como uma gripe, seja muito mais intenso e
letal. Tipo assim, apenas alguns segundos de exposição, sem máscara, e aí o sujeito
já bateria as botas!
– Não, não! Desse jeito vai espantar! – retruca
o ministro da Anticiência e Negacionismo. Atualmente contamos com um
contingente bastante expressivo de idiotas que são contrários às mais
consagradas evidências científicas, combatendo, por exemplo, o uso de vacinas
ou até dizendo que a Terra é plana. Esse tipo de gente é muito útil em
pandemias, pois erguem cruzadas contra as vacinas, não usam máscaras... Enfim,
estão do nosso lado! Mas se a gente criar um vírus tão potente que fique
inegável a sua atuação mortífera em poucos segundos, assim desse jeito a minha
legião de negacionistas vai passar a usar máscaras e até tomar vacina... Não
pode ser assim tão ostensivo, entendem? Eles têm que pensar que é somente uma
gripezinha, tá ok?
– Isso mesmo! – a ministra da Tentação volta a
participar. E podem deixar comigo, que eu vou atuar principalmente junto aos
jovens, meu público predileto. Farei com que eles se aglomerem bastante, com
tentações direcionadas para as baladas!
Neste instante, o ministro das Pestes e
Pandemias contribui com uma boa ideia:
– E eu posso criar um vírus com letalidade maior
entre os mais velhos ou com comorbidades. Aí tudo se encaixa! Os mais novos se
aglomeram e matam os mais velhos!
– Aí sim, hein? Gostei de ver! Pelo jeito, tu só
trabalha de cem em cem anos! – dispara o diabo rei, arrancando gargalhadas de
todos. Então, pelo que estou vendo, está se desenhando um projeto que será
tocado por três ministérios: Pestes e Pandemias, Anticiência e Negacionismo, e
Tentação. Quero uma integração perfeita entre vocês três, estão entendendo?
– Sim, meu fofo ardente e doce! Como sempre,
darei o meu melhor. Vou agir também no consumismo, com várias tentações de
compras, pegando aquelas pessoas que adoram bater pernas, fazendo com que se
amontoem nos shoppings e nos mercados de rua. Também vejo grandes
possibilidades no ramo turístico. Afinal, quem resiste a um belo pacote de
viagem com aquele descontão de ocasião?
– Ocasião da pandemia! – brinca o ministro das
Desgraças Extraordinárias. E todos riem novamente.
Tudo parece estar perfeito neste plano
literalmente diabólico. Porém, tem sempre alguém que consegue achar algum
defeito. É o ministro da Lei de Murphy:
– Mas o que vamos fazer com aqueles presidentes
ou presidentas que, dentro dos seus governos terrivelmente bons, consigam fazer
extensas campanhas de conscientização para combater a pandemia, implementando
mecanismos para atenuar toda a gravidade das desgraças que a gente quer ver? O
que vamos fazer com eles?
– Não precisamos nos preocupar com eles! –
sentenciou o ministro do Apocalipse, com ar vitorioso. Vamos concentrar nossos
esforços naqueles que estão do nosso lado, pois eles serão capazes de fazer um
bom estrago. A nação mais poderosa do planeta tem um presidente que está alinhado
com a gente. Mais abaixo, no maior país do hemisfério sul, entrou este ano um presidente
velho conhecido meu, desde quando, na década de oitenta, ele quis explodir um
quartel. “In Bolsonaro we trust” – com esta frase, dita com vigor, fecha sua
argumentação.