sábado, 26 de dezembro de 2020

O PLANEJAMENTO DA PANDEMIA DO COVID-19

 Vamos voltar no tempo. Estamos no dia 13 de agosto de 2019. Quanto ao local, espero que não seja familiar para nenhum leitor... É onde costumam acontecer as reuniões de cúpula do ministério dos diabos, em algum lugar do inferno. O diabo rei abre a sessão:

– Meus caros ministros e ministras, fiz esta convocação de emergência porque estamos enfrentando uma crise em nosso reino demoníaco. Como vocês já devem estar sabendo, nossos recursos estão diminuindo. Então a ordem, agora, é fazer mais com menos. O cronograma do apocalipse está atrasado. Infelizmente, esta nossa lerdeza em acabar com o mundo está fazendo com que muitas pessoas comecem a acreditar que os tempos difíceis estão chegando ao fim. Falam até em nova era, renovação, mundo melhor, todas essas baboseiras! Ora essa! Mas vou direto ao ponto porque não podemos perder tempo. Preciso que vocês me apresentem projetos de destruição, que sejam baratos e eficientes!

Neste momento, todos olham para o ministro das Catástrofes, que é quem geralmente toma a frente nestas ocasiões. Então ele levanta os seus faiscantes olhos vermelhos, mas de uma maneira meio receosa, e começa:

– Ilustríssimo diabo rei, como vossa majestade deve se lembrar, em 2004, no maior tsunami de todos os tempos, conseguimos obter um bom resultado: mais de 230 mil mortos. Coloco-me à disposição caso queira fazer algo parecido...

– Nada feito! – interrompe o diabo rei. Em que ponto da simples frase em que eu disse “nossos recursos estão diminuindo” ou “fazer mais com menos” você dormiu?!? Ninguém quer mexer com placas tectônicas agora. Sai caro e demora muito! Aliás, nossa crise começou justamente quando o seu ministério queimou todo o orçamento da década nesse tsunami. Essas obras faraônicas causam grande impacto, mas são pouco eficientes, a relação custo-benefício é ruim. Quero algo que cause uma grande desgraça sem gastar muito e com pouco esforço.

Por alguns segundos, todos ficam quietos. Parece que ninguém consegue ter uma ideia a altura do desafio proposto. Quem rompe o silêncio é a ministra da Tentação. Com seu gestual magnetizante e suas curvas perfeitas, começa a falar:

– Meu docinho quente e fofo – diz estas primeiras palavras olhando para o diabo rei. Sabes muito bem que eu sempre faço tudo para me infiltrar em todas as mentes para mergulhá-las no deleite das tentações. Com isso venho conquistando, no varejo, grandes progressos. Não atuo no atacado, como o ministro das Catástrofes. Prefiro agir assim, pontualmente. Mas tenho a dizer que, muitas vezes, fico surpresa com os resultados obtidos. O ser humano, de vez em quando, supera minhas expectativas.

– Sim, sim, minha magnífica ministra ­– o diabo rei, agora, suaviza a expressão. Sempre admirei o seu trabalho, desde a maçã e o paraíso de Adão e Eva. Você vem exercendo o seu ministério com extrema competência. Acho que vou te dar um aumento. Depois desta reunião, dê uma passadinha em meu gabinete, para tratarmos do assunto.

Nesta hora, alguns deixam escapar um sorriso malicioso, outros ficam um tanto indignados: “Como assim promoção?!? Não estamos mais em uma crise financeira?”. Só pensam. Não ousam enfrentar a autoridade do diabo rei. E, para acabar com este clima e prosseguir com o assunto da reunião, a maior autoridade do mal retoma a palavra:

– Você, ministro das Pestes e Pandemias, o que tem a dizer? Anda meio parado ultimamente, hein? Acho que seu último trabalho de relevo foi por volta de 1920... Como era mesmo o nome?

– Gripe espanhola – ergue a voz, um tanto tímido, o ministro bola da vez do momento.

– Isso! – o diabo rei exclama. Que tal você mostrar serviço e fazer jus ao salário de ministro que eu lhe pago? Quero uma pandemia! Não uma pandemiazinha, como a que você fez há uns dez anos... A... H1...

– H1N1, gripe suína... – outra vez completa o ministro das Pestes e Pandemias, intimidado.

– Não, nada disso, quero uma senhora pandemia! – ordena a diabólica majestade diabólica.

A esta altura, a reunião se inflama. Dá para imaginar? Uma reunião inflamada de diabos, que já são inflamados... Seria isto um pleonasmo? Bom, não importa. O fato é que cada um passa a dar a sua opinião ou contribuição. O ministro das Desgraças Extraordinárias é o primeiro:

– Que tal fazer uma pandemia assim: um vírus tão potente que, transmitido pelo ar como uma gripe, seja muito mais intenso e letal. Tipo assim, apenas alguns segundos de exposição, sem máscara, e aí o sujeito já bateria as botas!

– Não, não! Desse jeito vai espantar! – retruca o ministro da Anticiência e Negacionismo. Atualmente contamos com um contingente bastante expressivo de idiotas que são contrários às mais consagradas evidências científicas, combatendo, por exemplo, o uso de vacinas ou até dizendo que a Terra é plana. Esse tipo de gente é muito útil em pandemias, pois erguem cruzadas contra as vacinas, não usam máscaras... Enfim, estão do nosso lado! Mas se a gente criar um vírus tão potente que fique inegável a sua atuação mortífera em poucos segundos, assim desse jeito a minha legião de negacionistas vai passar a usar máscaras e até tomar vacina... Não pode ser assim tão ostensivo, entendem? Eles têm que pensar que é somente uma gripezinha, tá ok?

– Isso mesmo! – a ministra da Tentação volta a participar. E podem deixar comigo, que eu vou atuar principalmente junto aos jovens, meu público predileto. Farei com que eles se aglomerem bastante, com tentações direcionadas para as baladas!

Neste instante, o ministro das Pestes e Pandemias contribui com uma boa ideia:

– E eu posso criar um vírus com letalidade maior entre os mais velhos ou com comorbidades. Aí tudo se encaixa! Os mais novos se aglomeram e matam os mais velhos!

– Aí sim, hein? Gostei de ver! Pelo jeito, tu só trabalha de cem em cem anos! – dispara o diabo rei, arrancando gargalhadas de todos. Então, pelo que estou vendo, está se desenhando um projeto que será tocado por três ministérios: Pestes e Pandemias, Anticiência e Negacionismo, e Tentação. Quero uma integração perfeita entre vocês três, estão entendendo?

– Sim, meu fofo ardente e doce! Como sempre, darei o meu melhor. Vou agir também no consumismo, com várias tentações de compras, pegando aquelas pessoas que adoram bater pernas, fazendo com que se amontoem nos shoppings e nos mercados de rua. Também vejo grandes possibilidades no ramo turístico. Afinal, quem resiste a um belo pacote de viagem com aquele descontão de ocasião?

– Ocasião da pandemia! – brinca o ministro das Desgraças Extraordinárias. E todos riem novamente.

Tudo parece estar perfeito neste plano literalmente diabólico. Porém, tem sempre alguém que consegue achar algum defeito. É o ministro da Lei de Murphy:

– Mas o que vamos fazer com aqueles presidentes ou presidentas que, dentro dos seus governos terrivelmente bons, consigam fazer extensas campanhas de conscientização para combater a pandemia, implementando mecanismos para atenuar toda a gravidade das desgraças que a gente quer ver? O que vamos fazer com eles?

– Não precisamos nos preocupar com eles! – sentenciou o ministro do Apocalipse, com ar vitorioso. Vamos concentrar nossos esforços naqueles que estão do nosso lado, pois eles serão capazes de fazer um bom estrago. A nação mais poderosa do planeta tem um presidente que está alinhado com a gente. Mais abaixo, no maior país do hemisfério sul, entrou este ano um presidente velho conhecido meu, desde quando, na década de oitenta, ele quis explodir um quartel. “In Bolsonaro we trust” – com esta frase, dita com vigor, fecha sua argumentação.

E todos os diabos riem, felizes da vida!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

PIM

Pim é uma pomba-rola muito curiosa. Adora ciscar o chão a procura de algo que lhe sirva para colocar goela abaixo. Quando está ciscando em grupo, é sempre a primeira a encontrar as melhores coisas para comer. As outras pombas-rolas vivem admirando a sua habilidade: "Nossa Pim! Você é boa mesmo, hein?". Mas também a advertem de vez em quando: "Você tem que tomar cuidado! Se mete em cada lugar!".

E assim a vida para Pim segue normalmente, até que em uma tarde ela decide ir para um quintal muito bonito, cheio de árvores, lugar que ela já conhece por ter ido algumas vezes. Só desta vez não quer ninguém por perto. Assim pode ciscar à vontade, sem outras pombas falando para ela tomar cuidado e não se enfiar aonde não deve.

Assim que chega, logo nota um objeto diferente. Bom, neste ponto eu preciso explicar que este objeto é um vaso de vidro, em forma de cubo, sem terra nenhuma, que o Seu Rimeda limpou e deixou de cabeça pra baixo, sobre umas pedras chatas e redondas que são usadas para pisar no quintal. Preciso explicar também que o espaço entre a boca do vaso e o chão de terra é muito pequeno. E dizer que é bom a Pim não se meter a fuçar lá embaixo, senão...

Mas a gente conhece como é a Pim, não é mesmo? E lá vai ela, explorar a novidade. Cisca perto da boca do vaso e, ao encontrar algo que lhe interessa lá dentro, não vê mal algum em enfiar a cabeça por baixo da borda de vidro para pegar. Segura com o bico e... O tal negócio escapa e vai parar mais para dentro ainda! Ela não tem dúvida. Contorce ainda mais o corpo e, com muita vontade, estica-se para pegar novamente, até que... Oh meu Deus! Pim está presa dentro do vaso!

Como é de vidro e dá para ver tudo lá fora, ela pensa que dá para atravessar. Coitada! Não sabe que vidro engana os pássaros, a gente enxerga tudo, passa a luz por ele, mas ninguém consegue passar!

Então ela se desespera dentro do vaso, bate as asas, bate de tudo quanto é jeito nas paredes e no teto. Se cansa, para um pouco e, cada vez mais assustada, volta à sua luta para escapar!

O tempo vai passando, começa a escurecer. No mesmo quintal, por trás de uma cerca, mora um velho cachorro, o Bob. Mas Pim pode perder as esperanças, pois, por mais que ela bata as asas no vidro, ele não vai latir para chamar seus donos... Porque se Seu Rimeda aparecesse, poderia lhe salvar, tirando-lhe o vaso de cima. Mas que nada! O barulho que ela está fazendo não chama a atenção do cachorro. Além do mais, o Bob, pela idade avançada, anda meio molengão e dorminhoco, se depender dele, a nossa Pim terá um trágico fim.

Na rotina da casa, o próximo horário em que alguém virá para o quintal,  será somente lá pelas onze da noite ou até mais, que é quando o dono dá ao cão um quitute com o remédio no meio,  tira os cocôs que ele fez, joga água no xixi, etc. Até lá, Pim, pelo grau de desespero em que se encontra, não suportará...

Mas ainda bem que existem anjos da guarda, porque, se assim não fosse, esta história não terminaria nada boa...

Neste mesmo dia, Dona Sarima havia lavado os dois panos felpudos que o Bob deixa dentro da sua casinha, para aconchegar-se enquanto dorme. E, usando justamente este fato, o anjo da guarda entra em ação. Vai lá no ouvido da Dona Sarima e lhe assopra um pensamento: "Os cobertores do Bob!".

Então ela fala para o marido:

– Nossa! O Bob tá sem os cobertores dele! Acho que já secou. Tem que colocar...

Aí o que o Seu Rimeda responde deixa o anjo da guarda com as penas das asas em pé!

– Que nada! Que frescura para um cachorrão vira-lata! Ele pode ficar um dia sem isso...

Para a sorte da Pim, Dona Sarima não liga para o que o marido disse e sai em busca dos cobertores. Logo depois que os colocou dentro da casa do Bob, ouve um barulho e, um tanto assustada, chama o Seu Rimeda. Ele procura descobrir de onde vem o som e logo acha a nossa pobre Pim, desesperada, batendo as asas contra as paredes do vaso de vidro!

Rapidamente ele levanta a prisão da agoniada ave que, ao ver-se livre, voa para longe...

Bom, agora que tudo acabou bem, acho que, depois deste apuro, Pim não vai ser tão curiosa...