quarta-feira, 14 de março de 2012

Miséria

Sexta-feira, pouco mais de 21 horas, chuva. Eu, voltando do serviço, olhos fixos no para-brisa, tentando distinguir o aglomerado de luzes que se misturam. O limpador em seu vai-e-vem passa pelo vidro e mais embaça do que limpa. Está com algum problema. Movimento a cabeça de um lado para outro e descubro que posso enxergar melhor a poucos centímetros abaixo da linha normal de visão. Então enterro o pescoço nos ombros e lá vou eu.
Entro na alça de acesso para pegar a Delamari, em direção à São Caetano. O rádio começa a tocar Miséria, do Titãs. Dos dois lados da avenida, a favela Heliópolis impõe toda a sua grandeza. Na verdade, quem passa por aqui não consegue perceber o seu tamanho, mas ouvi dizer que é a segunda maior do país, só perdendo para a Rocinha, no Rio... Miséria é miséria em qualquer canto, é o que diz a música.
Ao aproximar-me do farol, vejo um rapaz correndo na faixa da esquerda, ao meu lado, praticamente na mesma velocidade que eu. Avança de cabeça erguida, carregando uma expressão de urgência. Penso que deve estar em apuros. O sinal vermelho, logo adiante, me faz desacelerar. Pouco antes de parar, aperto ainda mais o freio, pois me lembro de aplicar a conduta segura de manter uma boa distância com relação ao veículo da frente. Recomendam os mais prudentes para que se fique um bom tanto longe e, além disto, um pouco torto, meio enviesado na rua, a fim de espantar alguma abordagem. Não paro exatamente como o recomendado, mas o suficiente para salvar a minha pele, meu automóvel, meus pertences ou sei lá o quê, ou tudo isso junto...
Surgem vultos ao redor do carro parado em frente ao meu. Uns quatro ou cinco elementos, incluindo o rapaz da corrida na faixa da esquerda. Agora percebo o que está acontecendo. “O meu vai ser o próximo!”. Olho para a esquerda: livre. Em meio à tensão do momento, rapidamente viro o volante, acelero e escapo.
Miséria é miséria em qualquer canto, a música continua.
Eu escapo, ele fica. O que será que vão fazer com ele? Começo a sentir os fortes batimentos cardíacos. É a hora de o corpo reagir ao impacto emocional. Mas graças a Deus, nada me aconteceu. O meu anjo-da-guarda trabalhou bem. E o anjo daquele que estava na minha frente, não trabalhou bem? Porque ele e não eu? Poderia muito bem ter acontecido comigo. A vida é frágil.
A morte não causa mais espanto, a música continua.
É a miséria a causa de tudo? Miséria da não educação, miséria do abandono, miséria da impunidade. Miséria, miséria, miséria... A miséria das drogas, que ergue impérios à custa de desgraças.
Ninguém sabe falar esperanto, a música continua.
Até quando a música vai continuar?