sexta-feira, 5 de março de 2021

O NOVO NORMAL

Olho o carro na faixa da esquerda enquanto nos aproximamos do farol. Veículo grande, tipo SUV. Percebo que ele não quer chegar ao semáforo. Mas eu sigo minha marcha. No carro, minha esposa me acompanha, no banco de trás, ela e o nosso cão.

“Deve estar com medo”, é o que penso ao tentar explicar o comportamento do condutor ao lado, quase ao mesmo tempo em que vejo alguém surgir atrás do seu automóvel. Eu vou parando diante do sinal vermelho e o sujeito segue andando, já ocupando a parte da avenida que o SUV se recusou a ocupar.

Aproxima-se um pouco e logo percebo que se trata de um pedinte. Ato contínuo, afasto as mãos espalmadas para cima e digo que não tenho nada para dar. Sei que o tempo é curto, sei que a carteira está na mochila pendurada no banco, e ainda sei que, além do difícil acesso, ela contém apenas uma nota de vinte.

“Não, não, eu não quero dinheiro não!”, ele já fala ao ver o meu gesto. “Eu quero alguma coisa pra comer! Estou com fome!”, e continua dizendo coisas neste sentido. No borrão de palavras que restam em minha memória, acredito que ele colocou alguns exemplos de alimentos...

Neste ponto, percebo que nada posso lhe oferecer. A não ser a minha atenção de míseros segundos. Então falo algo mais ou menos assim: “Eu só posso estar aqui, na sua frente, e te ouvir...”.

Ele percebe a sintonia com a sua dor e fala, chorando: “Olha a minha situação! Na minha idade!”. Então percebo que temos mais ou menos o mesmo tempo de vida. E que ele jamais esperava chegar neste ponto... A minha atenção de míseros segundos ao menos serviu para ele desabafar...

O farol abre e a vida segue.