domingo, 12 de novembro de 2023

O MUNDO ANIMAL DO MEU QUINTAL

Estava me preparando para começar a regar o quintal. Carretilha com a mangueira a postos. Eis que olho para a copa do pé de romã e vejo um bem-te-vi. O bonito pássaro parece estar com sede, pois, de quando em quando, abre o bico, em um gesto que parece pedir água. Então começo a falar com ele, dizendo que tem água em uma tigela de plástico junto à ponta da cerca, perto do muro. Para que a imensa maioria dos leitores, que obviamente não conhece o meu quintal, explico, para ficar mais fácil, que este recipiente estava abaixo da tal ave com a qual dialogava. Fui falando e, para a minha surpresa, parecia que ela se interessava pela minha explicação, pois acabou se aproximando um pouco, passando para um dos galhos do pé de atemoia. Falei, falei, insisti em convencê-la a saciar sua sede com a minha generosa oferta, apontei para o local da tigela e, quando já achava que estava aprendendo a me comunicar com os pássaros, vejo que o bem-te-vi se afasta e vai pousar em cima do muro, para, instantes depois, voar para longe...

Depois deste primeiro contato com o mundo animal do meu quintal, parti para a tarefa de regar as plantas e a horta, para amenizar a alta temperatura de um dia de primavera, resultado de uma onda de calor totalmente atípica, graças às mudanças climáticas que vivemos atualmente...

Quando regava o canteiro das cenouras e das cebolinhas, comecei a ouvir uns pequenos estalidos, e logo identifiquei que os mesmos vinham de uma mariposa que, sobre a terra, batia as asas. Foi fácil perceber, de imediato, que ela estava morrendo. “Pois é, os animais, todos os seres vivos, também morrem... Chegou a hora desta mariposa”, este foi o meu primeiro pensamento ao ver a cena a uma certa distância. Mas, como os movimentos de agonia do inseto continuavam, resolvi observar mais de perto. Coloquei nos olhos os óculos que trago sempre pendurados no pescoço e aí pude constatar o que realmente acontecia. Ela estava sendo comida viva por muitas formigas! A cena era impressionante. Com as asas coladas na terra, o inseto alado expunha todo o seu corpo para o banquete de outros pequeninos insetos, que já haviam se deliciado com boa parte das entranhas da agonizante. Não consegui entender como ela ainda estava viva!

Voltei à atividade da rega, mas meu pensamento não deixou a mariposa. Imediatamente se instalou, dentro de mim, um debate sobre o que fazer a respeito desta situação. Reconheci que as formigas apenas buscavam a sua sobrevivência, dentro de mecanismos perfeitamente naturais e legítimos. Outro fato que não deixava dúvida era que a pobre mariposa, de modo algum, poderia sobreviver. Mesmo que encontrasse algum modo de livrá-la das formigas sem prejudicá-la mais ainda, mesmo assim era impossível que escapasse à morte. E a primeira decisão que tive foi não interferir e deixar que a natureza seguisse o seu curso.

Mas aquelas batidas de asas tiravam a frágil estabilidade desta minha decisão. Como ela ainda podia estar viva? Que tamanho sofrimento ela estaria sentindo? Não podia deixar que este terror em miniatura continuasse...

Então deixei a mangueira de lado, fechei a torneira e fui em busca de um cano que fica encostado em um dos cantos do quintal. Segurando-o firmemente, procurei posicionar a ponta bem sobre a cabeça da sofredora. Apertei. O movimento das asas se intensificou, juntamente com as patas. Tirei o cano de cima dela e verifiquei que ainda vivia. Caramba! Não queria que ela sofresse ainda mais! O meu movimento deveria ter sido mais forte e certeiro. Outra vez posicionei o cano sobre a pobrezinha, mas desta vez apertei ainda mais, movimentando a arma do meu crime de um lado para outro. E assim fiquei por alguns segundos, torcendo para que este tenha sido o golpe fatal.

Levantei o cano e constatei que, enfim, ela havia se libertado daquele incrível sofrimento. Agora as formigas poderiam seguir com o seu banquete sem a agonia do prato principal.

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

HALLEY

Cá estou eu, em 28 de julho de 2061, com 96 anos, olhando para o céu noturno, buscando o ilustre visitante que aparece a cada 75 ou 76 anos: o cometa Halley.

Em 1986, em uma turma de amigos, fugimos da luminosidade da cidade e fomos vê-lo no Riacho Grande. A cauda estava bem curtinha, mas, mesmo com este grau de decepção, a imagem ficou gravada na memória.

Sempre que me recordo deste dia, fatalmente me vem na lembrança um amigo, o Júlio, que também passou rapidamente pela Terra, pois nos deixou ainda jovem... Naquela sexta-feira de 1986, ele insistiu bastante para que eu pegasse a chave da chácara que meus pais tinham em Ibiúna, pois lá, segundo ele, seria o lugar ideal para apreciarmos o cometa. Encher o tanque do meu Chevette 77 e partirmos para lá, com o carro cheio de amigos: plano perfeito! Também concordo, teria sido maravilhoso. Mas eu não quis ir, apesar de todos os apelos. Com certeza ficou bastante chateado com esta minha atitude. Quer saber de uma coisa Júlio? Eu também fiquei mal com esta minha reação. Nunca te contei, e nunca poderei te contar, mas talvez agora você possa me ouvir enquanto mergulho o olhar enrugado nas estrelas... Foi a gagueira, minha maldita gagueira, que tanto me limitava! Naquela noite em que você, entusiasmado, argumentava o quanto legal seria a nossa aventura em Ibiúna, tudo o que eu mais queria era não ir para nenhum lugar. Queria me reprogramar, fazer alguma coisa para deixar de gaguejar. Tinha essas ideias bestas mesmo. Não me aceitava, negava a vida. Enquanto não fizesse aquilo que chamava de “reativação” ou “pacto”, para resolver o que para mim era o grande problema de minha vida, não queria saber de mais nada. Em algum momento após nos despedirmos, eu, dependente de minhas loucas regras e estratégias para não gaguejar, fiz essa tal de reativação ou pacto, o que me permitiu ir para o Riacho Grande no dia seguinte, mas a chácara de Ibiúna havia ficado para trás, valiosa oportunidade perdida...

Agora, tanto tempo depois, vejo o mesmo astro que testemunhou esta minha atitude que me causou um arrependimento por toda uma vida... A cauda está pequena, do mesmo jeito que estava em 1986. Bem que, desta vez, podia ter sido bem maior... Mas, pelo menos, acho que o Júlio ouviu o meu recado.